VAGABUNDO
Ricardo Lahud
 
 

Em semanas perambuladas pelas praias de Porto de Galinhas e vizinhanças aprimorei minha técnica de dormir ao relento. Na primeira noite cometi o equívoco de acender algum fogo, o lume atraiu a atenção da diminuta guarnição policial e, para evitar ser detido, mingüei minhas mirradas economias pagando o pernoite num albergue. Minhas roupas, então, ainda estavam apresentáveis, ainda usava um par de sapatos.

Na última noite em que dormi no areal, lua nova, céu estrelado, procurei um lugar distante da iluminação elétrica e dos coqueirais, escarvei uma pequena cova na areia fofa afastada do mar, no tamanho exato para encaixar meu corpo cansado. Nas laterais do leito ergui uma muralha de dez centímetros de altura que impediria que a gélida brisa da noite viesse me incomodar. Embrulhei-me em várias camadas com o Jornal do Commercio, amumiando com especial atenção os pés desnudos. Mitridatizado o olfato, não me incomodava mais o fedor pútrido das minhas vestes, tão saliente que, durante o ardor da tarde, chegava a atrair moscas. Adormeci abraçado à zurrapa, que me ajudaria a levantar quando o algor do alvorecer me arrancasse do igualitário reino de Morfeu.

Esperançava sonhar com as paisagens da Cote d’Azur, nos bons tempos em que eu comprava sem perguntar o preço e pedia sem olhar o menu. O encontro de hoje com Michel Lacombe, famoso chef de cuisine, nos fundos do Le Rouge, poderia me inspirar. Monsieur Lacombe veio ao Brasil dar consultoria para alguns restaurantes e eu fui merecer um prato de comida, em troca do qual presto serviço ao mais esnobe bistrô de toda orla pernambucana. Ao poente, finda a corrida do almoço, me é permitida a entrada na cozinha do Le Rouge para recolher o lixo produzido. Encho uma pequena carroça com cerca de dois metros quadrados de recavém e arrasto-a quatro quilômetros, município adentro, até um improvisado monturo. Este procedimento visa diminuir o tráfego de gandaieiros e bichos rastejantes nas redondezas do estabelecimento. O coque ficou surpreso por ser reconhecido e saudado em francês por um mendigo. Ficou mais intrigado por este ter-lhe contado que freqüentara seu restaurante em Nice, há cerca de dez anos, e louvar sua omelete com trufa e champignon como a melhor da Europa. Neste ponto menti, era entusiasta do original creme de aspargos selvagens, mas um verdadeiro chefe só se deixa envaidecer quando lhe elogiam a omelete. Um truque que aprendi com amigos gourmets. Ficou tão admirado que não conseguiu evitar meu aperto de mão e nem procurou disfarçar o uso imediato do mandil para se limpar. Lacombe dobrou uma nota de cinqüenta reais e a esticou ao alcance da minha mão, recusei – Não peço esmolas, não aceito gorjetas. Surpreendido pela minha rudeza, perguntou-me se sabia cozinhar, perguntei-lhe se havia vaga para um sommelier autodidata, ele se despediu, já dentro do automóvel cuja porta traseira o motorista mantinha escancarada, me respondendo, usando na voz a lendária arrogância gaulesa, – Desculpe meu orgulhoso amigo, mas esta terra só bebe branco doce e cerveja. Boa sorte. Enquanto o gascão se afastava, o mestre-cuca nativo não disfarçou o desagrado da minha intervenção, Lacombe nem se despediu dele. Não fosse pelo solidário cumim eu jejuaria esta noite.

O caminho até o depósito era quase todo plano e apenas a rugosidade da estrada obstaculizava uma maior velocidade. Por algumas centenas de metros a terra batida era substituída por um gramado ralo onde eu podia acelerar. Às vezes galopo me imaginando o craque Duplex, que sob a mágica condução do freio J. Garcia, trocou o caixote da baliza um pela baliza cinco, sem nunca perder o galão, na medida exata para suplantar as máquinas portenhas e vencer o Grande Prêmio em San Isidro, ou, correndo, fantasio-me de Ayrton Senna tirando finas dos muros nas sinuosas ruas de Monte Carlo, onde presenciei duas de suas vitórias, ou troto, fingindo ser um condutor de riquixá transportando sensuais gueixas em Xangai. Outras vezes, no entanto, me conformo em continuar andando lerdo como um manso burro de carga. A endorfina liberada pelo esforço da jornada me faz dormir melhor. Sob a carga, a paga: uma embalagem de alumínio contendo arroz, macarrão, farinha e pedaços de peixe e frango, além de uma garrafa de jeropiga pretensiosamente rotulada como bordô de mesa, produzida por uma família italiana às margens do São Francisco. Velado pelo Cruzeiro do Sul e estelar cortejo, uso os dedos para levar o alimento à boca e o jornal que embrulha a marmita para higiene, depois de me aliviar. Nos primeiros dias na cidade tentei usar o sanitário das casas de veraneio desertas, todas com trancas muito simples de serem abertas, e descobri que ficavam sem luz, água ou papel higiênico. Dois ou três veranistas encontrarão obras minhas decorando seus vasos.

A noite avança e, com ela, a umidade penetra nas notícias, página por página, e depois de irrorar a grande foto colorida do presidente sorrindo, vem resfriar minha pele. Minhas mãos procuram o cobertor que não há.

Fachos de luz aliviam a caligem da noite como pequenos sóis perdidos nas horas. Um ritmo agitado escapa do veículo com a capota arriada. Atraídos pelo destino até o exato ponto do imenso litoral nordestino onde repouso, um grupo de jovens, quatro moças e três rapazes, já com os sentidos alterados, decidem se aproximar do oceano para contar estrelas, nadar, beijar, dançar, cantar, transar, cheirar, fumar, beber, pular sete ondas. O mais alto deles tropeça no castelo e me desperta com um joelhaço no rim. Refeito do susto, o filho da elite mauricéia lança ofensas despropositadas. Surpreso com minha reação, contra-ofensas no tom de voz de um igual, certamente esperava que um camumbembe indolente lhe pedisse mil desculpas por estorvar o caminho, e frustrado com o rumo da discussão, treplicou com um chute no meu queixo seguido de um pontapé nas costas desferido por um cúmplice. Afundo na trincheira em posição fetal, protejo a cabeça, os testículos e a botelha. Suplico baixinho para que vão embora. Ficam. Descobriram uma nova distração. Enquanto os varões achoam, como podem, o exposto do meu corpo, as gentis damas treinam a pontaria, às gargalhadas, atirando pedras no meu covil. Sinto a pesada e perigosa chuva, o cachinar agride meus ouvidos.

Eu, que nunca tive medo de morrer, estou apavorado com a idéia. Morto, neste momento, neste estado, neste lugar, ou mesmo horas depois num hospital, certamente seria enterrado com indigente e minha mãe ficaria preocupada porque falhar-lhe-ia em telefonar aos domingos – Não tenha vergonha de ligar a cobrar, meu filho – e meu pai se decepcionaria comigo, outra vez, por não comparecer à ceia do natal. Eles não merecem que eu lhes falte novamente, mas nada posso fazer a não ser relaxar os músculos para que os golpes machuquem menos e rezar para que não me encharquem de combustível e fogueiem.

Vim ao nordeste pelas belezas naturais e confiante que meu conhecimento de línguas, sou fluente em inglês, francês e italiano, pudesse ser premiado na indústria do turismo, mas os senhores selecionadores preferem aparência, atitude, experiência, juventude e documentos à minha cultura de viajante. De documentos, o passaporte, já o meu terceiro, conheço quase todo o globo, vendi por um bom dinheiro em Foz de Iguaçu. A carteira de motorista vencida há dois anos e a carteira de identidade o dono de uma pensão em Porto Seguro tomou como garantia, junto com a bagagem. Nunca tive carteira de trabalho.

Cansados do jogo, os torturadores voltaram à sua vida noturna me deixando espandongado. Receberão o troco, eu juro. Sei onde estão, sei que chegaram no dia anterior aproveitando algum feriado escolar, sei que estão sós os sete na casa. Um vagabundo de praia precisa saber das coisas. Permaneço desvelado e imóvel até muito depois do nascente, amealhando energias do sol, do vinho e da raiva.

Ocra, o cottage avarandado foi erguido a duas quadras da beira-mar. Uma ampla sala de estar, decorada com mobiliário rústico, quatro quartos espaçosos e três banheiros e uma cozinha apenas mediana compunham uma boa morada, longe de ser suntuosa. Os veículos, todos pretos, estão protegidos no fundo nemoroso do terreno. Espiando por postigos e frinchas, perscruto o interior e confirmo uma única presença. Os demais preferiram curar a ressaca na praia ou foram mais cedo se bronzear.

Era fácil adivinhar porque a ruiva não havia se juntado a eles, a pele muito alva necessita de cuidados adicionais com o assoalhar. Na verdade, enquanto me esgueiro, silencioso, para dentro da sala ela completa o ritual de cobrir-se com quase um frasco inteiro de protetor solar. Já separados, sobre o sofá, outros dois frascos, sendo um de hidratante, uma camiseta, um sarongue multicor, óculos escuros e um chapeirão de palha acabanado. Ombros largos, cintura muito fina e pernas musculosas indicam se tratar ou de uma bailarina clássica ou de uma nadadora de longo curso. Esmecho-a com uma das garrafas vazias que repousava sobre a mesa. A pancada atinge a calvária e a menina desaba de bruços. Ao desvirá-la, ela reage, me derrubando com uma pernada no quadril. Palmas e plantas do pé no chão, apenas o atordoamento do golpe impede que se ponha de pé rapidamente e fuja. Quando joga seu peso para frente interrompo o vôo me dependurando na vasta cabeleira rubra. Suas costas estatelam no piso xilóide, o baque é seco. Com o cotovelo direito martelo o tórax com o peso do meu corpo, impedindo seu respirar. Aproveito a inação apnéica para arrancar o top do biquíni vermelho e, com ele, atar seus punhos ao pé do imenso louceiro de jequitibá. Amarro tão firme que logo uma linha violeta denuncia o sangue estrangulado pela lycra. Arrasto-a pelos tornozelos até que os braços esticados mostrem todo o cuidado com que depilou as axilas. Os peitos são pequenos, os mamilos de um róseo límpido. Decido-a hebréia e a nomeio Raquel. Não pergunto nada. Corajosa como a estória do seu povo, Raquel ainda não gritou, gemeu ou implorou. Sob o biquíni, descubro uma penugem frese, esculpida como um magro ás de ouros, convidando. Acomodo uma almofada como travesseiro, o inchaço na cabeça está bastante sensível ao toque. Uma maior, uso para elevar-lhe o ilíaco e a terceira para proteger meus joelhos, pois é ajoelhado que vou orar em seu templo carmesim. O adocicado sabor do seu segredo e a vigorosa pressão das coxas nas têmporas provoca uma ereção como há muito não experimento. Ao me sentir preso, grita por socorro, uma, duas, três vezes. Demoro a conseguir abrir-lhe as pernas e fazê-la calar. É preciso uma violenta mordida no clitóris seguida por um soco na boca do estômago para restituir-lhe a passividade muda. O esforço foi inútil, as casas vizinhas estão afastadas e desertas. Extasiado, penetro devagar na fenda lúbrica e me deixo ficar, sem movimentos pélvicos. Raquel também fica imóvel, fingindo-se de morta. Obrigo que me encare e toda vez que desvia do meu rosto os grande olhos prásinos acerto-lhe uma cabeçada. Os hematomas surgem rápido. O supercílio esquerdo, intumescido, já bloqueia a vista, o arrebitado nariz de princesa está fraturado, da boca, colorida por batom sabor framboesa, foge um filete de sangue. De formoso querubim renascentista a um mamarracho cubista. A menina não aia, não reclama das dores, apenas os olhos aguados – Olhe para mim - rosno repetitivo - quero que você se lembre, vai se lembrar sempre de mim, olhe para mim. A réplica é nova lágrima. A sensação de déspota da situação e as carícias involuntárias dos seus músculos íntimos, premendo e sugando o intruso, provocam um ejacular como o de um adolescente teso. Lasso, deixo-me ficar alguns instantes sobre a pele nívea a muxoxar pescoço e seios perfumados.

Recuperado, me preparo para o banho. Amordaço-a forçando a calcinha boca adentro e cerrando com uma generosa tripa de esparadrapo, cubro-lhe as vergonhas com meus farrapos malcheirosos. Sob a ducha tépida, sempre atento aos ruídos da casa, lavo a catinga. Sabonete com óleo de amêndoas, para a pele seca. Com aparelho descartável de lâmina dupla extirpo a barba rija, já encanecida em toda área do cavanhaque. Há tempos não me olho num espelho com tão bom aspecto. Por debaixo das feridas da surra, que o tempo há de curar, tirante o escanzelo e a pele curtida de retirante, ainda faço boa figura. Tomo um susto com um carro que passa, não posso ser preso, de jeito nenhum, só de pensar nesta possibilidade um arrepio me percorre a espinha, o que meu pai diria?

Para voltar a Ribeirão Preto preciso de dinheiro, por isto reviro todas as mochilas e malas, gavetas e carteiras. Escolho uma confortável calça de sarja cáqui e uma larga camiseta pólo marinho. Calçaram confortáveis os tênis importados dois números maior do que estava habituado. Recolho grana, talões de cheques, cartões de crédito e todos os documentos. Raquel é Sofia Klovisnky, muito prazer. Só vou usar papel-moeda, mas minha vingança teria de marcar toda a quadrilha, não só a aventurada judia. É preciso a certeza de que todo o grupo sinta a sensação de impotência diante do fato que senti quando imaginei que fosse apanhar até morrer. Anos atrás voltei até onde havia estacionado o carro, tive muitos carros na minha vida, e ele não estava lá. Mesmo consciente do furto, subi, desci e dei voltas no quarteirão tentando me convencer de que estaria em outra vaga. Abatido, sentei na guia me sentido castrado. Tinha seguro, recebi o dinheiro um mês depois, comprei outro automóvel e quase me esqueci do episódio. Eu não quero que eles esqueçam. Numa mochila há uma máquina fotográfica, bato várias fotos, closes indecentes, penso em fazer circular na rede, para seus amigos e familiares, eu não quero que eles esqueçam. Na última maleta há dois volumes embrulhados com cuidado. O primeiro é uma perigosa nove milímetros, automática de doze tiros, onze balas no pente e uma na agulha. Removo, com cuidado, toda munição, e devolvo-a ao seu berço. Espero que os cartuchos entupam o ralo, mais um motivo para se lembrarem. No outro uma agradável surpresa, uma Bowie inglesa, a faca de caça que cegou e batizou o rock star. Lâmina Sheiffield endurecida a mil e setecentos e quarenta graus Fahrenheit. Duplo tempero. Afiada à mão no rebolo. Um tesouro da cutelaria que só pode ser apreciada por um aficionado da grande arte. O idiota provavelmente a usa para churrasquear.

O semblante de Sofia passa de choroso para assustado, desesperado mesmo, quando me vê separar a falangeta e a falanginha de seu mindinho. Desinfeto com vodca e improviso um curativo com algodão e fita adesiva. Não quero que minha amante faleça exangue. Não sorrio enquanto mutilo, não sou igual a eles.

Guardo a jóia enxaguada do cruor na chique bainha de couro italiano e checo no espelho, nada se nota sob a roupa folgada. Com dez minutos de caminhada chego até um hotel onde tomo um táxi que me deixará na rodoviária da capital pernambucana, tomarei o primeiro ônibus para Maceió ou João Pessoa. Chegando lá, esperarei pelo primeiro leito para o Rio de Janeiro ou Belo Horizonte. Um terceiro coletivo me levará para casa onde surpreenderei minha querida mãe com este um lindo par de brincos. O dedo marasquino não levarei de souvenir, deixarei para ser apreciado por outros animais no caminho.