BARBARIDADE
Beto Muniz
 
 

Carta enviada à professora de literatura Dagmar Regina
Por censurar até levar às lágrimas a aluna que relatava seus entendimentos e sentimentos
sobre trecho de João Cabral de Melo Neto.

Caríssima, eu poderia iniciar esse texto como se fosse uma historinha, daquelas, da carochinha:

"Era uma vez uma moça que morava no mar. Um dia ela saiu do seu reino e veio habitar o mundo das terras secas. Após estabelecer nova residência a moça do mar percebeu a curiosidade de um punhado de pessoas querendo aprender sobre novos mundos. A moça se dispôs e aquelas pessoas se tornaram seus alunos. A moça do mar não sabia que no mundo das terras secas as pessoas tinham por costume entender cada história e cada narração de acordo com os próprios sentimentos, imaginando cenas que navegavam ao sabor da fantasia, livres de verdades absolutas. Dona Mar, como passou a se chamar, tentou impor seu entendimento das coisas, suas regras e barreiras nas mentes das pessoas sentadas a sua frente. Foi um deus-nos-acuda, pois seus pupilos eram aprendizes criativos, podiam errar na grafia, mas não erravam na expressão da arte, deixavam fluir suas idéias através do veículo que escolhiam, e quem quisesse que contasse de outra maneira. Após um longo período de tirania, que nem foi tão longo assim, eles perceberam as agressões contra o livre pensar e deixaram de querer saber qualquer coisa que a Doida do Mar tinha para contar. Ela acabou, por falta de amigos e de ter o que fazer, voltando para o mar".

Mas não é só isso que eu quero dizer, então eu vou considerar a gravidade de seu ato e mudar o rumo dessa carta.

Talvez você tenha saído do mar para ensinar segredos milenares que se perderam nas profundezas de algum oceano, mas também sua missão pode não ser de tamanha responsabilidade, pelo contrário, talvez você tenha saído do mar para aprender sobre nós, sobre os segredos que desvendamos através dos séculos. Caso sua missão seja aprender, não se decepcione cara Donamar, pois somos tão ignorantes sobre os mistérios debaixo do céu quanto você que chegou agora em terra firme. Acredito que fizemos pouco uso de tudo que descobrimos ao longo dos tempos, afinal demorou muito para que nossos antepassados passassem a registrar e perpetuar suas descobertas. Eles registraram suas observações para que, posteriormente, encontrássemos o caminho pronto e fizéssemos bom uso. Embora conhecimentos acumulados acrescentem autoridade em alguns assuntos, e vergonha em outros tantos, não creio que te importe comentar registros históricos quando nosso assunto descamba para o maior segredo que as mentes sentadas diante de você encerram: o sentimento.

Sabe algo sobre o sentimento do mundo? Nem eu. Por isso nossas emoções ainda é um mistério presente. Somos uma incógnita para nós mesmos quando adentramos nossos sentimentos. Sabemos que nossas emoções são despertadas por uma música, por uma foto, um filme, poesia, assovio, gesto... Sabemos quando ela chega e alguns até arriscam a dizer de onde vem, não tenho motivos para questionar aonde mora o sentimento, deixo que resida no coração, pois é ali, sobre o peito, que deposito a mão quando diante de um texto sou invadido por sentimentos diversos. E aí está a confusão maior, você ainda não entendeu que cada qual de nós, sente algo diferente diante da mesma situação proposta. Quem lê, assiste e aplaude, também vaia! Expõe seus sentimentos, externa suas próprias inexperiências ou vivências. Não é como uma tabuada em que duas vezes o dois é sempre quatro em qualquer canto do mundo. Dona, o autor transcreve seu sentimento e quem lê, ouve ou assiste interpreta a partir de fantasias próprias, nunca sobre imaginações alheias. Jamais uma pessoa vai decifrar o João pelo que ele escreveu. Acredite, eu vou entender o Cabral pelo que ele despertar em mim enquanto leio seu grito. Não direi que o galo do poeta é o sol cantando seus raios e após essa tradução querer que todos vejam os raios solares substituindo os gritos escritos. Quem sou eu para segurar em minhas mãos todo o sentimento do João Cabral?

Vê Rainha do Mar? Nós, seus alunos, somos leitores complexos e ao mesmo tempo autores complexados. Criamos cenas imaginárias para visualizar a fuga da heroína na paisagem descrita pelo escritor. Mas por acaso pensas que alguma das musas inspirou o autor a incutir em nossa mente o som dos pés femininos esmagando gramas pelas colinas? Não há musa na escrita, apenas arte pronta para atuar. As musas residem na leitura. É no leitor que a arte atua. Nenhuma luz paira sobre o homem que martela o teclado diante de si. Não há estrelas espocando sobre sua cabeça e nenhum ser mitológico assopra em seus ouvidos um parágrafo decisivo no romance. Dizem os grandes da literatura que há muito as musas foram assassinadas pela vaidade, pelos anseios de poder, pelo ouro e pela verdade. Atualmente tudo já foi escrito, cantado, sentido, comido e catalogado, estamos apenas formulando variações sobre os mesmos temas, mas em todas elas é necessário o leitor ou espectador acrescentar a própria imaginação para que a arte sobreviva. Sim Rainha Regente, eu preciso te alertar para esse detalhe; a arte é assassinada todos os dias nas salas de aula em prol da sobrevivência da matemática. Não que a arte e a matemática sejam inimigas, é até uma blasfêmia pensar que sejam rivais quando elas estão juntas na música. Mas o problema é que alguns mestres tentam transformar a arte literária em matemática, em lógica, em matéria exata e um texto não pode ter exatidão ou então deixa de ser suporte para a arte. É a arte na literatura que me permite gostar de determinada poesia que a você é indiferente. A arte possui a capacidade de fazer com que uma música toque meus sentimentos e em você passe vazia, sem emoção alguma. Se um autor conseguir que todos entendam exatamente o que ele sentiu quando compôs um verso, não existe ali arte e sim matemática, e então prezada Regente, melhor seria o poeta compor nova tabuada. Uma centena de contas exatas e incapazes de fazer nosso sentimento emergir do mar tal qual um dragão fantasioso bafejando fogo pelas ventas, como diria o poeta. Enfim Mestre Regina, só me resta um último alerta: Não erre novamente! Que diante desse dragão chamado sentimento, a gente só erra uma vez.