A ESTRANGEIRA
Teresa Maria de Magalhães Araújo
 
 

Silenciosa e viúva. Roupas escuras, cabelos presos em um coque, atravessava a realidade escondendo o viço em panos largos. Dentro dela, surgia um outro eu, que se ancorava no passado, enquanto o presente era apenas o bojo de alheamentos. Ana karenin, nomeada pelo pai, homem de descendência russa. Na pia batismal, a mãe contestou o nome, temerosa do futuro funesto da filha. As pessoas se parecem com seus nomes, murmurava. Fraca nas vontades, vencera o marido.

Iuri, companheiro de Ana, foi embora com uma mulher mais velha. Abandonou esposa e filhos, sob o desdém dos amigos, parentes e vizinhos. Imagem amarrotada, vivia longe de todos. Roído pela culpa, já. Papai morreu, dizia Ana, crispando os lábios. Acreditava cada vez mais na viuvez inventada. Os filhos cotejavam a informação com outras díspares. Tão sinistra ficou a casa sem a presença ruidosa dele. Mas a frase era incisiva. Aceitaram o silêncio. Tinham roupas bem cuidadas, mesa farta, dentes escovados, lição tomada. Tarefas cumpridas, Ana fechava-se no quarto, a despeito da solidão filial. Portas cerradas, homenageava o passado. Todas as noites o mesmo cerimonial. Banho demoroso, toques, cremes e perfumes sutis, música suave. O mundo era só lembramento.
Gostava quando chegava a primavera. Quando os filhos iam para a escola, entregava-se ao sol. Era outra. A longa cabeleira, rebuçada no coque, libertava-se escorrendo até a cintura. Seios rijos, entre os fios dourados. Ao leve toque, eriçava-se a macia relva que cobria suas pernas bem torneadas. Sondava frequentemente o cavo ventre. Sorria um riso louco.

Amalucava devagar.

Poderia ter saído no encalço do marido, aquele desgraçado. Matado a ambos com os maiores recursos de crueldade. O ciúme estaria satisfeito e a vingança aliviaria sua alma? Mas não. Andava em direção contrária à do ódio. Vivia tão desgarrada do presente, que não percebeu uma construção subindo no terreno dos fundos. Olhos furtivos esquadrinhavam sua intimidade.

Chegou o verão. Cada vez mais, Ana se enfiava no passado. Sentia-se uma estrangeira no seu tempo. Não mais cuidava das crianças, da casa, das finanças. Os filhos em desarrimo perderam os modos infantis. Tristes e mal ajambrados, viviam pelos cantos ruminando o abandono. Ana repetia os não-afazeres. Era um só-se-cuidar no cultivo do próprio corpo. Ritualizava os banhos de sol. Nua, expunha-se. O corpo e os gestos à vista do homem insistente, que a espiava pelas frestas da janela. Era o ex que a namorava dali. Tão fresca, tão limpa. Sabia agora. Era linda, era a mulher amada! A antiga proximidade o cegava.

*****

Paixão passada a limpo. Resoluto, ele bateu à sua porta. Ela abriu, o olhar transpassava-o como se fosse invisível. Estrangeira

- Pois não, senhor, o que deseja?

Cabelos grisalhos, olheiras arroxeadas, boca seca. Arriscou:

- A saudade me trouxe de volta, Ana.

Ela não o reconheceu, perdida nas brumas da loucura. Fechou a porta da frente e escapou rodopiando casa adentro.

 
 
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