O GENEBRÊS
Ricardo Lahud
 
 

A areia solta de Ipanema agasalha meus pés perto do meio-dia. Eles seguem ligeiros até ao lado de duas morenas bem feitas de corpo, turistas ou universitárias matando aula. Apresento-me, forço um sotaque francês que já perdi. Faz sucesso. Poderiam espalhar o protetor solar nas minhas costas? Em outras terras, levaria um tapa. Aqui, as duas moças se ajoelham, uma de cada lado da toalha na qual me esparramo e acarinham, sem nojo, sem pudor, minha pele nívea. Esclareço que não sou francês, sou suíço, nascido em Geneve, a melhor cidade do mundo. Quem disse? Há um índice que leva em conta poluição, criminalidade, educação, trânsito, expectativa de vida. Não conheço Goiânia. Das costas passam às pernas. Todos contamos piadas sujas. Banho de mar? Vão na frente que já as alcanço.

Logo nos primeiros meses assessorei um exportador paulista que preferia deixar o dinheiro fora do país. Indiquei um banco. Fez uma pergunta que soou tão estapafúrdia aos meus ouvidos suíços que pedi que repetisse. Se o banco é seguro? É um banco, deve ter guardas armados, um cofre respeitável, sistema eletrônico de vigilância. Nunca havia pensado nisto. Ele não se referia à segurança física, mas a algo ainda mais inacreditável. No Brasil, disse ele, não é raro que bancos, às vezes com dezenas de agências e milhares de clientes, simplesmente desapareçam do dia para noite. Levei muito tempo para compreender que esta é uma terra onde bancos desvanecem no ar.

Arroz, feijão, bife e banana frita. Duas cervejas. Salada mista à parte. É meu almoço diário. Doze reais, inclusa a gorjeta do Antenor. Em Geneve você mal toma um café por três euros.

Subo o morro com a roupa do corpo e o dinheiro contado. Os soldados de Zelito me conhecem, mas é bom não dar mole. Sempre tem garoto novo com dedo nervoso. Compro meio tijolo do pernambucano e dez gramas da pura, me serve um mês. Antes de fechar o negócio é de lei dividirmos um baseado de sua reserva especial. Não é tão especial. Zelito chama alguns gerentes, adora me ouvir recontar que na Suíça a única droga reprimida é a heroína, mesmo assim em algumas cidades há santuários, praças públicas, onde a polícia tolera o tráfico e o uso, e a municipalidade estimula a troca de seringas usadas por novas. Um aidético custa muito mais caro do que um idiota.

Um amigo banqueiro me liga. Alguns anos atrás eu o aconselhei sobre remessas de dinheiro para paraísos fiscais e, ou ele se considera em dívida para comigo, ou teme as informações que possuo e se esforça para me deixar feliz. Um cliente seu necessita de dólares para pagar um compromisso de vulto que vence em dois meses. Como o preço está baixo, começarão o processo de compra da moeda americana no dia seguinte, a partir das dez e quarenta e cinco da manhã. Fosse na Suíça, eu o teria denunciado e ele seria preso por me passar tal informação, não porque o quisesse mal, mas para evitar que eu também fosse acusado. Aqui é diferente. Chego cedo à corretora e já na abertura do mercado compro todos os lotes que me permitem. Feita a compra, repasso a dica para os amigos. A cotação sobe sem oscilar. Quatro horas depois revendo tudo por alguns centavos a mais. Oito centavos. Parece pouco, mas o lucro equivale a dois anos dos meus gastos.

Na minha garçonnière em Copacabana recebo a mulata clara que diz se chamar Shirley, diz já ter dezoito anos e parece bastante impressionada com o apartamento, que não passa de uma kitchenette bem decorada. Talvez seja o ar condicionado ligado na potência máxima. Acredito, por que não? Acredito quando diz que gosta de homens com pele branca como a minha, sem pelos no peito e com pau grande, como eu. Concorda em receber um pouco a mais para dispensar o preservativo. Beija, lambe, esfrega. Seu esforço para me deixar feliz é quase comovente. Na tentativa de me deixar feliz pela segunda vez se engasga. Dispenso com delicadeza, não estou mais em idade de duas na mesma tarde. Ainda nua, Shirley me surpreende ao iniciar uma faxina. Seja para impressionar o alemão com quem sonharia em casar para se tornar madame na Europa, seja por imitação da própria mãe em algum barraco num morro calorento. Admiro os mamilos rijos pelo frio esculpidos nos seios juvenis, os olhos atrevidos, o nariz arrebitado de baronesa, a energia nas coxas musculosas sem sinal de celulite. Imagino que em Geneve ganharia em um mês como faxineira o que fatura aqui durante um ano. E como prostituta, vinte ou trinta vezes mais. Chamo-a de volta ao leito, dividimos uma carreira enquanto ela me masturba.

É domingo, de tarde lá, de manhã cá, a CNN mostra uma rara manifestação pública em Geneve, milhares de pessoas nas ruas apoiando as pesquisas médicas com o uso de células tronco e protestando contra o Vaticano pela posição da Igreja. No Rio o que mais se discute esta semana é o caso Adriano: o craque do Flamengo, estaria realmente contundido ou simulava uma contratura para não ter de viajar a Campos enfrentar o Americano? Futebol por aqui é uma seita, se um carioca encontra um estranho e descobre que torce pelo mesmo time é capaz até de lhe dar um abraço só por isto; já torcer por um time rival é uma espécie de defeito congênito. É pior do que uma seita, porque depois de você escolher um time, lá pelos oito ou nove anos de idade, não pode trocá-lo jamais. Neste país onde se troca de partido político a cada meia hora, de mulher a cada dois dias, de religião sempre que convém, até a mudança de sexo é mais tolerada do que mudança de agremiação. Não importa que você não goste de futebol, nem mesmo que more no exterior. O máximo que se permite fazer a um cidadão insatisfeito é escolher um time de outro estado e, sem nunca renunciar ao original, torcer em paralelo. Estou esperando pela esposa que foi com as empregadas à missa para almoçarmos na casa de seus pais. Católica, envolvida em atividades de caridade, ela acha que o Papa fala muita coisa certa, mas também fala muita coisa errada. O interfone toca, é o novo porteiro que deseja confirmar minha nacionalidade e pede informações sobre o boato que ouviu no ponto de ônibus sobre a venda de Adriano para um time suíço. Amanhã pedirei sua demissão ao síndico, mas hoje, generoso, deixo que fique em vantagem em relação aos seus pares; confirmo que a notícia é verdadeira, manchete em todos os jornais da Europa. De minha parte sou luterano e filho de Ogum, não praticante.

Timóteo é professor de semiologia e de literatura africana. Não tem cinqüenta anos, mas já conta com três aposentadorias acadêmicas. Ainda dá aulas, duas vezes por semana, para alunos de pós-graduação. É companhia constante no fim-de-tarde, seja para uma cerveja em boteco, para um joguinho de xadrez ou para uma preguiçosa caminhada no calçadão. Estava confuso com minha colocação e tive que explicar ao amigo. Meu cargo é de adido comercial da embaixada da Suíça na Noruega. Por dez anos fui adido no consulado geral no Rio de Janeiro, há dois anos fui promovido e transferido. Na diplomacia não se recusa transferência, muito menos promoção. Meu salário aumentou em vinte por cento e minha verba de representação em quarenta por cento. Eu teria seis meses para me apresentar. Duas semanas antes do prazo final enviei um ofício alegando que seria impossível me mudar naquele momento e requerendo meu antigo cargo. Que minha esposa acabara de se formar e abrira na cidade um consultório odontológico do qual não poderia, por hora, se afastar. O cargo antigo já estava ocupado. A burocracia helvécia não sabia como resolver a pendência porque não recusei nem desisti do novo encargo, então me deu um prazo indefinido para assumir minhas funções em Oslo. Há dezoito meses recebo aqui no Brasil meus vencimentos de adido europeu. Imagino que algum dia eu receba outro comunicado, mas o novo prazo para qualquer mudança jamais será inferior a um ano, sou um funcionário do Estado, não do governo. Aí a gente vê o que faz. Timóteo não escondia o sorriso cúmplice.

Com a aparência e o gestual de um chimpanzé de circo a menina ensaiou coletar a carteira de dentro da bolsa de uma turista italiana que, como eu, aproveitava a generosidade da natureza desfrutando água no coco na barraca do Robélio, no Posto 6. Devia ser uma de suas primeiras tentativas de tomar o que queria, ainda tinha idade para pedir. Foram os dedinhos magros segurarem a presa para minha mão envolver seu pescoço como uma coleira. O sonoro croque chamou a atenção da furtanda que demorou um pouco para entender o que se passava, me agradeceu e firmando a bolsa junto aos seios, acelerou em direção ao hotel no outro lado da rua. Continuei prendendo-a pela garganta e apertei até tirar o fôlego. Relaxava e acertava outro cascudo. A negrinha era boa para se dar croque. O mau humor com o qual acordei aquela manhã estava passando. A parasita que se aproveitava da criança veio aos berros para cima de mim, difícil dizer se era uma irmã mais velha ou uma jovem avó, estas macaquinhas brasileiras se reproduzem muito jovens. Usei a mão do croque para lhe acertar um soco na boca. Foi a vez de uma madame coberta de manchas senis gritar e gesticular e partir em minha direção até ficar ao alcance da minha mão livre que marcou os dedos em rubro no seu colo tão branco como o meu. A confusão atraiu todo o tipo de polícia e acabei concordando em seguir até a delegacia. Chegamos apenas eu, a velha marcada e um velho que alegava ter visto tudo. As negras escorreram na primeira distração. Robélio se ofereceu para me acompanhar, mas o dispensei. O delegado me conhecia de vista, na conversa descobrimos amigos em comum. Lamentava, mas seria obrigado a abrir um inquérito, uma chateação, mas a senhora é filha de general, do tipo que não se casa para não perder a pensão do exército, com muito tempo livre e muitos conhecidos. Interrompi-o com o máximo de educação e tato possíveis, demonstrei minha condição de diplomata. Não posso ser processado por suas leis. Ele se desculpou, me ofereceu um cafezinho e me acompanhou até a porta.

Todas as sextas-feiras recebemos, minha esposa e eu, alguns casais de amigos para um jogo amigável de bridge ou apenas para coquetel e bate-papo. Nosso apartamento no Leblon tem vista para o mar. Para lá não levo nem substâncias ilegais, nem pessoas desqualificadas. Minha esposa brasileira, de família tradicional, educação mimada, dentista recém formada, mais parece uma britânica bem nutrida. Como todo profissional liberal em início de carreira, trabalha muitas horas por dia e não ganha o suficiente. Quem toma conta do apartamento são duas empregadas, uma arrumadeira e uma governanta que foi sua babá. Ambas dormem no emprego. Um dos comensais, ao me ouvir elogiar a Suíça, com seu sistema democrático em que eleição livre nem é parte crucial, onde a maioria da população ignora os nomes do presidente e do primeiro-ministro uma vez que tem como garantidos saúde e educação de primeira qualidade e uma aposentadoria cinqüenta vezes superior à brasileira, me interrompeu - "Parece o Paraíso, você devia voltar para lá". Ana Carolina nunca mais o convidou.

Foi no auge de uma crise de tédio que matei pela primeira vez. Estava há dois anos no Rio de Janeiro e maldizia esta terra todos os dias. Não sabia o que era ser carioca. Morava em Botafogo e fui dar uma volta no tarde da noite para aproveitar uma rara onda de frio na cidade. Por alguma razão levava essa faca de caça, presente de um conterrâneo. As ruas estavam desertas com exceção de um menino, um adolescente mal nutrido, sentado num banco inalando cola de sapateiro. Sentei-me ao seu lado, nenhuma reação. Vestia apenas um calção negro como a pele, no tronco podia se contar as costelas e foi entre a segunda e a terceira que encaixei o primeiro golpe. Sentiu a pancada, mas não dor. Tive que torcer a lâmina dentro dele para conseguir um gemido. No segundo golpe mirei a zona do pulmão e do coração, espirrou sangue para todos os lados. O líquido morno umedeceu-me mãos e braços. Voltei correndo para casa onde satisfiz minha primeira esposa como nunca a satisfizera antes. E nunca a senti tão abaixo das minhas expectativas. No dia seguinte pedi para que fosse embora, me ameaçou com acusação de estupro, mostrei meu passaporte diplomático e ofereci à pragmática ariana um divórcio rápido no qual ela ficaria com a casa nos arredores de Gevene e com o chalé em Gstaad. Desde então, quando fico enfastiado, saio para caçar. Às vezes me arrisco com alvos maiores, travestis, prostitutas. Minha jovem mulher nunca reclama quando levo para casa o prêmio em forma de libido.

Em Geneve, as chances de um culpado ser descoberto e punido são noventa e cinco vezes maiores do que na cidade do Rio de Janeiro. O Inferno é muito mais divertido.