CADÊ O MONTEIRO?
Raymundo Silveira
 
 

Onde andará o Monteiro? Por favor, alguém aí em Portugal poderia me dar notícias dele?" Gostaria imenso de reencontrar o Monteiro, pois não o vejo desde Agosto de 1980, portanto há quase vinte e seis anos. Este início de conversa fiada está a se assemelhar muito com uma história real que sucedeu com um ricaço analfabeto da minha aldeia quando veio morar aqui na cidade grande. Ele se punha nos pontos de parada dos ônibus e acenava para cada um que passava. Quando o veículo parava, ele subia, pedia ao motorista para aguardar um instante e indagava em alto e bom som a todos os passageiros: "Alguém sabe dizer se o João Arruda vai aí?" Mas, quem sabe, até as pedras se encontram, diz um velho chavão. Pode ser que algum internauta lusitano conheça e dê notícias do Monteiro. Naquele tempo ele deveria ter entre quarenta e quarenta e cinco anos, sua estatura era mediana, a cabeleira basta começando a grisalhar e, infelizmente, são apenas estes os detalhes que lembro a fim de descrever a sua aparência física, embora ainda tenha aqui comigo uma fotografia onde ele está presente; só que é do peito pra cima. O Monteiro foi o meu cicerone durante a minha primeira viagem a Portugal. Para ser mais preciso, foi o taxista que me levou a conhecer, não apenas a cidade de Lisboa, como também o Estoril, Cascais, Queluz, Sintra, bem como toda a Estremadura. "Vão à Europa?" Esta foi a primeira grande surpresa que tive durante a minha estréia portuguesa. "Ué, aqui não é a Europa?" "Quase!" Respondeu o Monteiro a sorrir. Somente algum tempo depois foi que fui me inteirar do porquê daquilo, mas isto é um assunto que só caberia noutra crônica. Por enquanto, basta gravar estas três palavras: Pirineus, mouros e navegações. A segunda surpresa que o Monteiro me repassou foi quanto ao uso, ou melhor, ao não uso do gerúndio em Portugal. "Estão a gostar?" "Ficaram a conhecer bem o Castelo da Pena?" "Estão a ver aquelas ruínas? São do Castelo dos Mouros!" Mais um tema para uma nova crônica. Por ora, é suficiente saber que fomos nós, brasileiros, que abusamos desta forma verbal, influenciados por idiomas adventícios. Infelizmente, vou ter de fazer algumas restrições à competência do meu primeiro amigo em terras lusas, embora reconheça que estarei sendo um pouco injusto para com ele. É que as informações históricas que hoje detenho acerca da terra do Monteiro são, seguramente, dezenas de vezes mais ricas e precisas do que as dele próprio. Mas reconheço que seria exigir demais; seria algo assim como se alguém desembarcasse no aeroporto do Recife, tomasse um táxi qualquer e pedisse ao motorista que ministrasse uma aula sobre Maurício de Nassau e o domínio holandês no Brasil. Então, o Monteiro não explicava — e nem haveria como — que no Mosteiro de Alcobaça estava situado o túmulo da desditosa Inês de Castro, ao lado dos restos mortais do seu amante apaixonado, Dom Pedro Primeiro (primeiro lá para eles, entenda-se, porque o nosso só nasceria 473 anos mais tarde); que o Mosteiro da Batalha foi mandado construir por Dom João Primeiro, marido da rainha Fillipa de Lancaster (e eu não teria hoje uma filha com este nome se, quando voltei ao Brasil, não tivesse ido estudar a história portuguesa); que naquele quarto do Palácio de Queluz — aí sim — nasceu e morreu o nosso Pedro I; que... São tantas as coisas preciosas que o Monteiro não contou, que tenho dó dos meus companheiros de viagem por não haverem reiterado, como eu reiterei, mais meia dúzia de vezes aquele mesmo roteiro. Mas, em compensação, nunca encontrei em Portugal, nem no Brasil, nem nas dezenas de países onde já estive, um gourmet igual a ele. Numa certa manhã de Domingo, ele nos levou mais uma vez para Cascais e fomos almoçar a um restaurante sobre cujas mesas repousavam braçadas de camarões — do tamanho do meu antebraço — e lavagantes. Quem ainda não teve o prazer de conhecer estes últimos, imagine uma lagosta mais ou menos com o porte e o peso de um abacaxi médio. Os crustáceos eram fresquinhos como flores recém-aparadas de suas plantas. Eu gosto mais de lagostas e de camarões frescos do que (ia dizendo de mim mesmo, mas reconheço que seria um pouco exagerado), do que... Tudo! Ao lado, deles jaziam, sobre cada mesa, duas garrafas de "Bucelas". Sentamo-nos a uma delas e eu fui ao vinho, às gambas e aos lavagantes como se estes fossem os únicos exemplares remanescentes na face da Terra. Para ser mais exato, entornei, sozinho, duas garrafas de "Bucelas" e devorei quase todos os camarões e boa parte dos lagostões. Já fiquei embriagado na Europa inúmeras vezes, mas naquele Domingo o Monteiro teve de cobrar taxa de entrega em domicílio porque sem ele eu jamais teria chegado ao meu quarto no Hotel Flórida, à rua Duque de Palmela, 34. Numa outra ocasião, ele nos levou a almoçar a Sintra numa espécie de taberna decorada à moda medieval. Foi uma festa para os olhos, mas, sobretudo para o paladar e para aquela minha devoção quase fanática ao deus Baco. Descemos por uma escadaria íngreme e, subitamente, deparamos com um ambiente parecido com aqueles descritos nos romances de Alexandre Dumas. As paredes eram revestidas com garrafas de vinho de todas as marcas, cores, safras, idades, rótulos, buquês e sabores que se possa imaginar O chão era ladrilhado com toscos tijolos de barro cru e escuro, e junto com o ambiente refrigerado, transmitiam uma sensação de umidade que não havia. Pendiam do teto, como balões ornamentais nas nossas festas juninas, pernis de porco defumado, que lá atendem pela graça de presunto (presunto, lá, é fiambre); enormes embutidos, como lingüiças, chouriços, salsichões e salames davam voltas pelo vão livre das paredes, onde não havia garrafas de vinhos, e pareciam gigantescas serpentinas comestíveis; imensos tonéis de vinho do Porto completavam a decoração. O cheiro fazia encher a boca de saliva até de quem estivesse sem apetite. Sair dali sóbrio e mal alimentado seria muito mais difícil do que encontrar homem de antojo. Se eu não tivesse retornado mais a Portugal e alguém me pedisse informações sobre o país, só poderia responder com estas palavras: "aquilo não é país, é antes um gigantesco bebedouro e comedouro à beira mar plantado". É o que devem estar a dizer os meus três companheiros de viagem que ainda não alcançaram a graça de voltarem para lá. E tudo isso, graças ao Monteiro. Cadê ele, hem?