LONGE DE CASA
Beto Muniz
 
 

- Oi papai!

A voz infantil soa num misto de alegria e ansiedade típica de quem está com saudades e eufórico para contar as novidades das férias longe de casa e dos pais. Do outro lado soou uma voz estranha:

- Oi. Com quem você quer falar?

- Quem está falando?

Crianças não sabem que existe a possibilidade de discar para casa e do outro lado da linha não ser sua casa. Por isso ela imagina que um amigo do papai está de visitas e responde a pergunta com outra pergunta:

- Aqui é o Sérgio, você quer falar com quem?

- Oi tio Sérgio! Cadê o Guilherme?

- Desculpe, acho que você discou errado, aqui é uma empresa.

- Não é o tio Sérgio pai do Guilherme?

- Não, você discou errado algum dos números. Desligue e ligue novamente.

- Tá bom.

A coincidência era ela ter um tio chamado Sérgio, que na verdade é primo do seu pai, com um filho na mesma faixa etária. Ela compreende que se enganou. Estava há uma semana na casa da avó, no interior. No decorrer dos dias nem lembrava que tinha pai e mãe. As brincadeiras e farras misturadas com as novidades, proporcionadas pela estadia na vila do interior, tomavam as horas das meninas de cidade grande. São três primas que só se encontram no período de férias escolar, a mais velha tem nove anos e a caçula vai fazer sete, e é justamente ela quem está discando novamente para casa. A ansiedade por falar com os pais escapando na ponta do dedinho escolhendo números.

- Oi papai! - bastou ouvir a voz masculina do outro lado para despejar parte da ansiedade mista de saudades.

- Olá, você discou errado novamente.

Apesar da voz do outro lado ser gentil e calma os olhos da menina avermelharam, mas isso o Sérgio não vê, apenas percebe o tremor na voz da criança.

- Cadê meu pai? Eu disquei certo agora.

- Não querida, você ligou para a empresa que eu trabalho.

A curiosidade se confunde com a necessidade de entender o que está acontecendo.

- Você trabalha de noite?

- Sim eu sou vigia.

- O que faz um vigia? - agora é apenas curiosidade.

- Um vigia fica de guarda durante a noite para espantar algum ladrão que queira roubar a empresa.

- Você é da polícia?

- Não. Eu sou a polícia da empresa, mas fora da empresa eu não sou policial.

- Entendi.

Ela fica alguns segundos sem falar, os pensamentos em ebulição e o vigia quem retoma a conversa.

- Liga novamente, prestando bastante atenção nos números, que você vai conseguir falar com seu pai. Tá bom?

- Tá. - a tristeza já abateu sua voz.

Ela desliga e liga novamente, bem devagar e com absoluta certeza de que os números estão corretos, mas um dispositivo interno já disparou a cautela e ela pergunta desencantada ao reconhecer a voz do outro lado:

- Quem está falando? - voz miúda, um fiapo, de quem se vê perdida num local estranho sem entender como foi parar ali.

- É o Sérgio. - o adulto sabe que alguma coisa está errada e não quer assustar mais ainda a criança. Responde macio e pergunta pelo nome dela.

- Meu nome é... - ela diz seu nome.

- Eu já falei que meu nome é Sérgio né? - ouve um soluço do outro lado e sabe que não vai receber resposta, então continua - Você está tentando falar com seu pai e não está conseguindo, né?

Nada. Do outro lado apenas silêncio. Ele pensa, tenta descobrir qual é a melhor atitude agora, como pode ajudar a menina. Enquanto arma alguma forma de tranqüilizá-la ela despeja com a vozinha entrecortada pelo choro silencioso.

- Eu tô com saudade do meu pai... quero falar com ele... mas você fica falando que eu liguei errado... mas eu não liguei errado... eu liguei certo... eu liguei certo... disquei todos os números de casa...

O vigia percebe que a ligação foi cortada e também desliga. No peito um nó de tristeza por contágio.

Toca o telefone e ele sabe que é a menina tentando novamente. Na verdade ele tem medo que seja ela. Está pensando em como ajudá-la e atende só depois do quinto toque.

- Alô? - voz calma.

- Cadê... o... meu... pai...? - piorou. Agora cada palavra é cortada por um soluço.

Sérgio interrompe com cuidado:

- Tem algum adulto ai com você?

- A minha vó... ela está tomando banho... deixou eu ligar para o meu pai... mas você só fica falando que meu pai não está ai... só fala que eu disquei errado... você está na minha casa? - o choro é abundante atrapalhando o raciocínio e a fala da criança.

- Não querida, não estou na sua casa. Qual é o número da sua casa?

- Eu estou ligando para minha casa... - a agonia dela escapou e a incompreensão só faz crescer o choro.

- Diz pra mim os números da sua casa.

Com alguma dificuldade ela vai soltando número por número até formar a seqüência completa. Pode ser que o pai dela seja funcionário na empresa durante o dia e ela está confundindo os telefones... "Ela disse que está com a avó. Está em férias!" o pensamento é um sol irrompendo em meio à escuridão. Sérgio chega à conclusão que o pai da menina mora em outra cidade e pergunta:

- Em qual cidade seu pai mora?

- Em... São... Paulo...

Ele quase grita de felicidade, mas controla a ansiedade. Na euforia de ajudar diz que a menina está ligando errado para o número certo. Ela não entende a explicação atrapalhada e suspende os soluços para montar o quebra-cabeça dentro da mente. Minutos depois ela já compreendeu que deve discar 015 depois 11 e só então o número de casa. Estava discando apenas o número de casa. Desliga sem agradecer abandonando do outro lado da linha um vigia comovido, com os olhos brilhantes de felicidade e alívio.

São quase nove da noite quando o telefone toca, eu atendo:

- Pronto!

- Papai... - é a única coisa que ela consegue falar antes de irromper num choro de cinco minutos contados. Depois se acalma e começa a narrar sua história com o guarda desconhecido. Já passa das dez da noite quando ela desliga, contou maravilhas das férias, das primas, de um cachorrinho que quer trazer para casa, de como ajudou sua avó fazer arroz doce. Parece esquecida do desespero que passou.

Ligo para o número de casa, mas utilizando o código de área de minha mãe. Sérgio atende e eu o agradeço. De coração.