O POÇO
Thaïs Martins
 
 

A tarde quente, abafada, aquele sol de seca, com um halo em volta, uma sensação desagradável de opressão no peito.

A sombra do velho cajueiro era meu canto de aconchego: copa alta, larga, sarapintada de florzinhas vermelhas, cheiro doce enjoativo, abelhas zumbindo alto e as redes brancas amarradas entre os seus múltiplos troncos.

Três crianças conversavam debaixo da árvore e olhavam para uma cisterna de concreto, com os ombros um pouco curvados, as pernas apertadas. Aquele lugar teve gosto de festa, era lá que o avô costumava sentar-se para descascar e picar cana, partir melancias, todos em volta, comendo e rindo. – Venha tirar a barriga da miséria, minha filha, e, em seguida, o quintal inteiro vibrava com suas gargalhadas. Sem sua risada mágica, que sacudia a gente, uma névoa tomou conta daquele lugar e tudo ficou meio que suspenso no ar. Inquietante, mais ainda agora que uma parte da tampa do poço, rachada há tempos, desabara.

- Joana, é um buraco fundo. Caiu um gato lá embaixo. Coitado. Ficou cheirando a carniça, sussurrou a menina menorzinha, puxando conversa.

- Eu levei um susto, Lara. Vi quando a alma dele saiu correndo de lá de dentro. Parecia uma bola de fogo. Incendiou o galinheiro. A menina falou alto, excitada arregalou seus olhos esverdeados e ajeitou as tranças. Curvou-se, os cotovelos sobre os joelhos, as mãos no queixo e sentiu a blusa, maior do que ela, dançar em seu corpo; suspirou.

- Fiquei de castigo. A vovó disse, - alguém pôs fogo no ninho da Alice, perdi meus pintinhos. Deve ter sido arte da Lara. Uma semana sem dormir aqui comigo. E a guria magrela, branquinha de olhos cinzentos, cabelos marrons cortados em cuia, nariz arrebitado, levou a culpa.

- Du-du-du-vido que seja um po-po-po-ço de água. Pa-pa-pa-rece um túmulo. Thiago gaguejava um pouquinho quando começava a falar, só enquanto olhavam para ele. Suava bastante e seus cabelos castanhos, enrolados em cachinhos apertados, estavam molhados, os óculos escorregando pelo nariz fininho.

“Hummm, tem alma penada”, imaginou Lara, a Magriça.

Meio afobado, o menino falou para as primas o que aprendeu no colégio sobre a Revolução de 1932, aqui no Estado. Estufaram o peito, admiradas, quando ele contou que o avô foi o chefe da luta contra a tal da ditadura, naquela época em que ficaram ao lado de São Paulo.

Trêmulo, ele apontou para uma casa ali perto, onde é a Maçonaria. Foi lá a antiga sede do Estado de Maracajú, criado pelos rebeldes e formado pelo Sul de Mato Grosso. Uma aventura que durou três meses, depois eles perderam e foram obrigados a morar um ano no Paraguai. Ficou uma sementinha plantada; dela nasceu, quase meio século depois, Mato Grosso do Sul.

O menino ficou quieto, piscou de desconforto. Sem coragem de continuar a falar, pensou: “puxa, eu não sabia de nada, fiquei com vergonha lá na escola. No meu livro não tem essa história.” E, nervoso, levantou-se e foi medir a boca do fosso. Fez um desenho no chão, uma conta e concluiu. - Aqui dentro cabem, pelo menos, uns vinte soldados, para ficarem bem enterrados junto com as suas armas.

Elas, impressionadas, olharam o lugar com respeito. Lara imaginou que, por dentro, ele era feito de camadas escuras, formadas por uma espiral de fantasmas mudos e cheios de medalhas.

- Deve ter um túnel secreto que vem da sede e vai até debaixo da casa. Acho que passa por aqui e pelo reservatório de água, que se chama algibre, sempre trancado; não sei da chave. Uma vez encostei o ouvido naquela tampa de metal e escutei barulho de água.

Lara olhou para Joana e respondeu baixinho, como quem conta um segredo: – acho que a porta é invisível.

Ela ia ao porão todos os dias, sentava na cadeira da escrivaninha, lá na biblioteca e ficava virando pra todos os lados, se olhando no espelho, fazendo caretas. Imaginou: “amanhã vou subir no banco de madeira. Vou pegar a caneta preta, molhar no tinteiro, desenhar essa guerra”.
Saíram e foram, apressados, olhar a casa vizinha. Era alta, pintada de amarelo claro. Na fachada os desenhos de um compasso, de um esquadro e a frase: LIBERDADE, IGUALDADE, FRATERNIDADE. Será que é uma igreja? Dizem que quando morre alguém deles, sai daí uma fila de homens de terno preto, com um aventalzinho pontudo, vão direto para o enterro, parecem uns feiticeiros. Deixaram os mistérios de lado e foram correndo para a casa.

Na manhã seguinte, o céu ainda escuro, começava a amanhecer quando Lara chegou olhando para os lados. Abaixou-se perto do poço morto e enfiou um bilhete. Tremendo, foi sentar-se numa das raízes da paineira, num pedaço sem espinhos, que ela tinha arrancado com um caco de vidro. Quieta, chupando o dedo, queria descobrir o que acontecia ali, depois que anoitecia.

Meio que sonhando, falou para os espíritos o que tinha escrito:
- venham logo, estou com frio.

Olhou para o Casarão e ele dormia. Desbotado, janelas fechadas, luzes apagadas. A lua iluminando o fogão de lenha do galpão. Olhou triste. Lembrou-se de quando ficava lá de castigo, com a tarefa de mexer o tacho de sabão, ou doce de leite, ou de goiabada. A Indeia vigiando. Ela queria experimentar torrar o café, não deixavam por causa do perigo. Parecia gostoso ficar virando a torradeira preta, cheia de sementes, em cima da brasa, até cheirar tostado. O ponto certo só a avó sabia. “Ai, que saudades dela”. Hoje era tudo da tia.

Sentiu-se perdida. Levantou-se depressa e foi descontar sua aflição chutando o pé de camélias. Acertou, também, no lírio amarelo, que ficava perto. Não gostava daquelas flores brancas.

– Enjoadas, quando pego nelas aparecem uns dedinhos marrons onde eu apertei. Futriqueiras. Com o tranco, as flores se curvaram e espirraram, eram alérgicas ao pólen alaranjado dos lírios.

Inquieta, Lara foi até a escadaria de mármore, em frente da casa e sentou-se no primeiro degrau, apoiou-se no pilar do corrimão. Lembrou-se que estava sozinha no quintal, que hoje seria dona de todos os coquinhos da bacaiuveira do canto do muro, perto dos mangaritos, tão docinhos. Sorriu, não tinha pressa; suas primas faziam promessas para acordar mais cedo do que as outras e ainda estavam dormindo.

Ouviu um barulho diferente. Ficou alerta, vinham chegando uns soldados fardados, a cavalo, rostos e mãos brilhantes, fardas esfumaçadas. Na frente ia um general, seu avô, do lado. Vieram a galope e deram uma volta na casa. Ele deu adeus para ela. Entraram pela porta fechada do algibre, saiu uma luz estranha pelas frestas do poço. Sumiram.

Daí a pouco, um toque de clarim quebrou o silêncio. Vinha lá da sede do antigo governo, seu avô chegando. O soldado, que guardava a porta, olhou para ele. “Era alto, moreno, cabeça redonda, testa larga, olhos amarelos, apertados, um ar de onça. Imponente, parecia um cacique guarani.” Estava de terno branco e gravata vermelha, um pouco apagados, sua cara brilhava.
Lara ouviu a saudação ao longe, ficou de pé e fez uma continência.

Um novo galope, um outro cavaleiro chegando, era um fantasma atrasado, com um animalzinho ao lado. Correu atrás dele, pegou o gato no colo, montou naquela garupa assombrada, atravessaram a porta do algibre e, também, sumiram.

 
 
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