BELIEVE
IT OR NOT
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Raymundo
Silveira
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"When
sorrows come, they come not single spies, but in battalions". Depois de desdormir durante a noite do dia oito para nove de Fevereiro de 1986, amanheci somente com as faces anterior e posterior do corpo. Como pude saber? Ora, me examinando. Medindo. Experimentando. Apenas duas dimensões: largura e altura. Tinha verso e anverso, mas quase nenhuma espessura. Uma moeda. Cara ou coroa? Cara, pois só me via de frente. Aqueles que cuidam estar ouvindo (lendo) absurdidades, não perdem por esperar. Minha maior estupefação não foi o fato em si, mas não entender por que o meu corpo bidimensional se comportava como um objeto de três dimensões. Isto é, se mantinha ereto, e se locomovia. Embora com alguma dificuldade. Depois, caminhei livremente. Foi quando cheguei à conclusão de que eu não era um objeto, como uma moeda ou um papel, e sim, uma sombra. Mais precisamente, uma imagem de fita de cinema. Acreditei, também, haver chegado a uma descoberta extraordinária. A consciência estava intacta. Ora, se eu podia não apenas perceber o ambiente em meu redor, como também pensar e construir idéias com uma mente imaterial, logo, devia existir atividade mental independente da matéria. Ou pelo menos, de algo tridimensional, como um cérebro. Só mais tarde experimentei as implicações práticas. Por um lado, havia vantagens nada desprezíveis. Seria o único mamífero a não ocupar lugar no espaço. Acesso fácil a qualquer ambiente fechado, desde que existisse uma frincha. Indiferente estar em casa ou na rua. Desnecessário abrigo. Andarilhar e jamais cansar. Deslocava-me, desembaraçado, por entre multidões apinhadas, sem o menor desconforto. As trevas não me detinham. Uma luz sem ser iluminava de futuro o meu presente. Era, enfim, um ninguém estando alguém. Devia pensamentear ou sonhar. Ou então, se tratava de um fenômeno virtual. Bom demais para ser verdadeiro. Só podia estar contagiado de século vinte e um. Não. Era tudo bem real. Mas aos poucos fui dessaborando. Havia o outro lado da medalha. Subitamente, adoeci de lucidez. Os órgãos dos sentidos, sem relevo, se desdiferenciaram: olfato, visão, audição e paladar se confundiram. Via e sentia o gosto da coisa vista. Ao pronunciar qualquer palavra escutava o seu odor... E vices. E versas. Ao assistir ao desfile das pessoas comuns pelas vielas da vida, um mal-estar indefinido me invadia. Sentia-me um fantasma, um duende... Um diferente. Quando cheguei a essas conclusões, estremeci de terror. Um vento poento assoprou na minha face e uma chuva nervosa caiu sobre mim. E tudo o quanto eu era sofreu de não ser mais. Cato a causa cardinal do acaso acontecido. Tenho como a mais provável, a saudade de não ter tido pais. Fruto de uma geração espontânea, comecei a ser sem ter sido. Não me pariram: nasci-me. Sou filho adotivo de ninguéns. Um descendente em linha reta do absurdo. No máximo, um enteado de Deus. De gota em gota, o tempo modulou o meu passado. E quando me entendi por gente, já era como fui na véspera daquele dia em que me vi disforme. Bolinei uma lâmpada de Aladim que não havia, e um gênio mouco escutou meus três pedidos. A partir de então, sofro alternadamente a sucessão e a simultaneidade dos instantes. Pouco importa. Só Interessa saber que eu era fisicamente parecido com toda gente. Apenas a minha alma era diversa, pois gemia silenciosa a dor do alarido calado da violência da vida. O auge dessa violência se deu no início da puberdade. Um sanguinoso doutor operou a minha alma e, de propósito, deixou um camundongo dentro da cabeça. Mãos avaras de piedade complementaram o trabalho, arrepanhando o coração. E restaram somente dois olhos supurando lágrimas, uns farrapos de pele porejando mágoa e uma artéria aberta vertendo vida. Ficou somente este corpo desalmificado que hoje não passa de uma sombra viva. A qual, orientada pelo nada e ocidentalizada pelo caos, bordeja, bêbada de pavor, rumo a um pretérito imperfeito. Sinto sendas sinuosas - sem saber a sua destinação - se estreitando à minha frente. Palmilho-as acicatado só pelo instinto. E me extravio num labirinto de tremuras, de tonteiras, de náuseas e de desbrios, sem nenhum porventura para me mostrar a saída. Nuvens carregadas de esquivanças anoiteceram minha tarde ao meio-dia. Meus cartões de crédito de esperança há muito já estouraram seus limites. Tenho, enfim, a impressão de que estou morto e me esqueci de parar de respirar... Estranho. Agora acontece um efeito curioso: ao invés de experimentar terror, estou me sentindo privilegiado por ser diferente. Continuo a confundir percepções. Mas onde antes via infrutuosidades, agora encontro prestanças. Vejo uma torta de maçã e, mesmo sem comer, provo o sabor. Manduco as pétalas de uma rosa e deparo um belíssimo jardim. Cheiro um livro velho de Vieira e ouço os seus Sermões. Experimento a obscuridade, mas basta bocejar para escutar a luz. Também, ao perpassar a multidão, não vejo mais em mim um duende ou fantasma, mas um Príncipe. Continuo sendo capaz de devassar um cômodo atravancado, só que isso não me dá mais prazer algum. Não teria sequer coragem de cometer tamanha indiscrição. Prefiro bater e esperar. Enfrentaria as trevas sem temor, porém maisquero aguardar o amanhecer. Enfim, só me incomoda aquilo que antes parecia vantajoso. Não me é mais indiferente estar ou não desabrigado. A privacidade da minha casa e o aconchego do meu quarto me fascinam. Estou deixando de ser uma sombra para me tornar algo parecido com uma fotografia... Não consigo me manter sozinho em posição vertical. Ainda assim posso caminhar. Embora com certa dificuldade... Pressinto que cairia se não me apoiasse em coisas fixas. Nas ruas, só era possível me locomover se me segurasse nas árvores. Agora, ao entrar em casa, nas paredes. Perdi o equilíbrio. Sinto que vou cair... Percebo nitidamente que estou engrossando... Retomando uma terceira dimensão. Não distingo se isso é bom ou ruim. Pronto! Sou tridimensional como antes... Consulto um relógio-calendário sobre o criado-mudo. São sete da manhã de nove de Fevereiro de 1986... Estranho. Muito estranho... |