NATAL COM VISTA
Rachel Torrado
 
 

Ele era o típico chefe de família da classe média baixa suburbana; sapatinhos antigos dos filhos, do Vasco, pendurados no retrovisor, que balançavam conforme o movimento do carro. Dono de cadeira cativa em São Januário, gostava de um Rider e ria fazendo estardalhaço.

Sua vida e seu destino eram estáveis, previsíveis. Pelo menos era no que ele e o tal do senso comum acreditavam. Até o dia em que Anita, que tinha ficado presa até mais tarde no trabalho, voltou pra casa de carona com um colega da repartição. Ela, que já tinha ligado avisando que 'a janta' ia atrasar, que só chegava pelas 21h porque tinha relatório pra entregar. Ela, que tinha dito que ia de táxi, tinha conseguido uma carona até o Rio Comprido, ufa.

Deviam ser lá pelas 21:30h, quando Marinelson a viu descer daquele carro preto, que visto lá da varanda do 9º andar, mais parecia um modelo importado. Ele viu quando ela, depois de saltar, meteu a cara pelo vidro do carona adentro - como se quisesse prolongar a despedida. "Coisa de namoradinho", pensou ele, enquanto seu rosto recebia o sangue de outras partes do corpo e suas têmporas começavam a latejar.

O coração bombeava forte e Marinelson inteiro pulsava quando Anita entrou em casa.

Fazia um tempo que as coisas não estavam mais como antes, pensava Marinelson no intervalo de tempo que a mulher precisou para entrar no prédio, esperar o elevador e caminhar até a segunda porta à esquerda - o primeiro apartamento próprio deles, depois de 10 anos de aluguel. Não sabia afirmar com certeza, mas achava que tudo tinha começado a degringolar quando, aquela vez, no cinema, Anita colocou a bolsa no seu colo, sobre suas próprias pernas e não suas pernas sobre as pernas dele. Mais ou menos nessa época ela também começou a acender seu abat-jour quando iam pra cama; "antes você não lia pra dormir, e agora pegou essa mania", vociferava Marinelson, que a cada dia se sentia mais desprestigiado e o mundo injusto.

Precisava acontecer isso justo com eles, que até pouco menos de um mês antes, eram capazes de incendiar o quarteirão, transar na varanda, em cima do caput do carro, adesivado, de Marinelson? Justo com eles, que tinham feito viagem romântica há pouco tempo pra Caxambu?

"Ela tem outro.", era a única certeza da vida de Marinelson quando ouviu o barulho que a chave de Anita fazia na fechadura do apartamento 903.

E antes que Anita pudesse dizer qualquer coisa - como por exemplo, tecer um comentário sobre quão vermelho estava o marido - as mãos grandes de Marinelson encontraram seu pescoço. Ele tinha olhos de coisa ruim e pareciam não ver nada.

Ele já não se lembrava. A nova realidade se mostrava nítida diante dos seus olhos. Não sabia, naquele instante, que era ela a mãe dos seus filhos, Caio e Cassiano; não recordava que era Anita quem lhe fazia cafuné enquanto ele dormia assistindo DVD, não tinha mais consciência nem de quem ele era, até porque não se achava grande coisa mesmo. Sempre soube que era um coisa-à-toa.

"Pois o coisa-à-toa não é corno manso não, sua Piranha!", ele bradava enquanto apertava ainda mais as mãos em torno do pescoço da mulher, que aos poucos foi mudando de cor e deixou de tentar reagir.

Cerca de 15 minutos depois tio Marlúcio ligou pedindo que ele descesse, pois Anita tinha esquecido qualquer coisa numa sacola no seu carro.

Ao ver o carro do tio chegar, e o telefone tocar - quase ao mesmo tempo - Marinelson se atirou da varanda, agarrado ao corpo inerte de Anita, chorando, enquanto a vizinha de baixo assistia ao intervalo comercial da novela das 20h onde se cantava "já é Natal na Leader Magazine".