O HOMEM QUE SABIA JAVANÊS
(homenagem a Lima Barreto)
Paula Cury
 
 

Era José seu nome. Vivia num barraco preso a uma ribanceira, apenas por algumas estacas mal postas, escorregando um pouco quando chovia. Um dia não teria teto. Ele sabia, mas vivia cada dia sem pensar no barranco e nas chuvas de verão que se aproximavam.

Catava papelão nas ruas. Latinhas também. Dava um bom dinheiro: um prato de comida lá pelas cinco da tarde e uma boa dose de cachaça para esquentar a noite.

Havia ido a escola. Sabia ler. Sabia escrever seu nome com todas as letras nos lugares certos.

José da Silva. Nunca errava a ordem das letras.

Não tinha família. Vivia só. Acreditava que pobreza solitária era mais fácil de carregar nas costas. Se tivesse mulher e filhos, a vida seria difícil. Talvez não sobrasse o dinheiro da cachaça. O que ele faria sem a branquinha diária? Por isso não se casou. Por isso não teve filhos. Por isso vivia sozinho.

Naquele dia de dezembro quase perto do natal, José verificava as rodas do carrinho, enquanto o sol dava os primeiros sinais de vida lá no horizonte. José gostava muito de ver o sol nascer. Acordava antes para prestigiar os raios meio dourados, meio amarelados bem claro, invadirem o céu, chamando um novo dia. José sentia-se importante. Acordava antes do sol. O astro rei de todo universo ainda dormia, enquanto ele já estava de pé. Era como se sentir mais importante do que o sol. Era assim que José pensava.

Olhou para o céu e pôs-se a caminhar pelas vielas até alcançar a rua. Sabia a direção a tomar. A mesma direção de todos os dias. A grande avenida já mostrava sinal de trânsito pesado. Andava e observava os carros, os passageiros, os caronas. Será que eram felizes? Apressados. Cara de mal dormidos. Não. Não eram felizes. Ele também não era. Sem compromisso, sem família. Precisava alimentar o corpo, e isso, bastava uma vez por dia. Sua única alegria era ver o sol nascer.

O carrinho ia enchendo de papelão e latinhas e alguma coisa interessante encontrada na rua, para decorar o barraco: um quadro, um relógio sem ponteiros, um livro. Um livro. Há anos José não lia um livro. Na verdade leu apenas na escola. Escola pública aonde ia mais para comer a merenda do que para estudar. Aprendeu a ler e a escrever. Depois de anos aparecia no seu caminho um livro.

José encostou o carrinho bem rente ao muro. Pegou o livro. Assoprou a calçada como se limpasse o chão para sentar. Sentou e, lentamente, abriu o livro para descobrir os mistérios que aquele monte de papéis guardava.

Passou os olhos pelas letras, unindo-as para fazer algum sentido em sua cabeça. Palavras estranhas lhe apareciam. Muitas consoantes sem sentido. Onde estariam as vogais? Fechou o livro. Talvez não contivesse nada de importante. As letras não faziam sentido.

José sentado na calçada olhava para os carros que passavam rápidos não querendo esperar o vermelho do semáforo aparecer. O livro em seu colo. Olhava a rua e olhava o livro. Que raios teria aquele livro? Pensou em colocá-lo junto com os papelões amontoados no carrinho. Era pesado, ajudaria no almoço, mas um comichão pegou seus olhos e ele piscava sem parar. Alguma coisa no livro chamava sua atenção e só por isso resolveu abri-lo novamente. Só que dessa vez abriu na primeira página e não mais no meio.

Estava lá, escrito em letras grandes: “COMO APRENDER JAVANÊS”. José parou. Coçou a cabeça tentando descobrir o que seria esse tal de Javanês.

Virou a página. Leu devagar cada frase, respirou em cada vírgula. Parou para pensar em cada ponto. Percebeu: Javanês era uma língua, assim como o inglês e o espanhol. Virou mais uma página e lá estavam as letras sem sentido, porém ao lado, bem explicadinho, estava o significado da palavra, bem como a forma que se deveria falar. Enrolar a língua. Foi isso que José pensou. E falou alto a primeira palavra em javanês de sua vida. Ficou ali sentado tanto tempo que não percebeu o dia passar. Notou que o sol se despedia quando seus olhos já não conseguiam mais juntar as letras. Estava escuro e ele não era gato para enxergar na escuridão.

Levantou meio assustado. Passara o dia lendo. O trabalho ficara pela metade. Não teria comida, nem tão pouco a branquinha para esquentar o corpo. Olhou para o livro e quis culpá-lo, mas não conseguiu. A vontade que tinha era de continuar a ler. Ler e aprender javanês. Pra que? José não sabia, mas a vontade tomava conta de toda sua alma e ele só pensava nas palavras de muitas consoantes. Já havia aprendido umas tantas e voltava para o barraco puxando o carrinho meio vazio e falando as palavras recém aprendidas.

As pessoas que passavam por ele ouviam aquele palavrório todo e apertavam os olhos. Era louco. Com certeza. Não falava nada com nada.

José passou pelo boteco de todo dia. Sentiu o cheiro da comida e babou a vontade da branquinha. Estacionou o carrinho na calçada e entrou.

Chamou o dono do bar e perguntou se poderia fiar um prato de comida e uma cachacinha.

O tal do Manoel, dono do boteco, conhecia José. Todos os dias ele aparecia por lá, comia, bebia, pagava certinho e ia embora para voltar novamente no dia seguinte. Mesmo assim, teve receio. Se fiasse a comida e a bebida e o homem desaparecesse? Já havia recebido calotes assim. O freguês acostuma o dono do bar. Depois de um tempo pede fiado. Fia o mês inteiro e na hora de pagar, some para nunca mais e o prejuízo fica gritando no caderninho de contas a pagar.

José percebeu a preocupação do Manoel. Pensou em sair. Voltar para o barraco. Podia comer no dia seguinte. Um dia só sem comer, não o mataria.

Deu dois passos em direção à rua. Virou e voltou. Encarou o Manoel e ofereceu. Trocaria o prato de comida e a birita por uma aula de javanês.

Aula de javanês? Perguntou o Manoel. Que raios seria isso? José explicou. Era uma língua como inglês, como espanhol, só que só pessoas muito inteligentes é que sabiam falar javanês (isso de inteligente de quem fala javanês, José inventou na hora. Precisava fazer o Manoel acreditar que falar javanês era importante).

O Manoel duvidou que José falasse javanês. José mostrou o livro e disse, (mentindo), que sabia tudo o que estava ali. De frente pra trás e de trás pra frente, também, e começou a falar palavras em javanês. Se juntasse as palavras ditas não teriam sentido algum, mas José estava apenas começando a aprender javanês. Então falava casa, cachorro, eu, carro, ser estar. Falou tantas e tantas palavras em javanês, que o dono do bar se convenceu e acabou por trocar o prato de comida por uma aula rápida de javanês.

Saciado, de barriga cheia e corpo quente da cachaça, José voltou para o barraco. Dormiu abraçado ao livro.

Depois daquele dia, José não saiu mais para catar papelão ou latinhas. Ficava no barraco, estudando javanês e, na hora da fome ia ao bar e trocava o prato de comida por outra aula de javanês.

A fama do homem que falava javanês se espalhou pelo bairro. Todos queriam saber quem era o tal que falava e ensinava javanês.

José ficou famoso e ao cabo de dois meses já tinha dez alunos. Cobrava pelas aulas. Tomava o café da manhã, almoçava e jantava no bar do Manoel. Era ali que dava suas aulas. Então, três alunos pagavam as refeições e ainda sobrava o dinheiro dos outros sete alunos, que José guardava bem guardado. Os anos passaram. José mudou de casa. Já não morava no barraco. Morava em um sobradinho bem pintado e arejado. Vestia roupas novas, simples, mas novas e cheirosas. Dava aulas de javanês em casa. Na sala, recebia cinco, seis alunos em horários diferentes. Juntou dinheiro. Comprou um carro usado. Acabou por se apaixonar por uma aluna. Namorou e casou. Teve filhos, uns quatro, que aprendiam javanês, antes mesmo de falar “mamãe” ou “papai”.

A vida de José mudou, porém ele continuava com o hábito de acordar antes do sol nascer. Subia na laje do sobradinho e esperava o sol acordar. Sorria feliz olhando a sua volta. A casa. A mulher ainda adormecida. Os filhos. O sol nascia e José cumprimentava seus raios com um “bom dia” em javanês.
 
 
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