PRESSA
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Maurem
Kayna
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Paola conseguia atrasar-se para qualquer situação, mesmo quando acordava cedo ou iniciava os preparativos para sair de casa com folga era dispersa. Nunca encontrava prontamente o relógio de pulso e cada um dos relógios da casa e eram muitos marcava um horário diferente. As divergências costumavam ser pequenas, apenas um sintoma do tumulto de tempos cruzados e sobrepostos que carregava em si. Segundas-feiras eram ainda mais complicadas porque o hábito de espalhar em papéis avulsos, bordas de revistas e recibos variados as anotações que deveria endereçar à agenda a impedia de usar o final do domingo para programar-se. Restava a pressa na manhã seguinte. O despertar inundado de ansiedade e recriminações à própria desordem eram rotina tratada como bicho de estimação que foi mal condicionado e que, já muito velho, cabia tolerar. Saía de casa atrasada, sem tomar café e com uma lista confusa de possíveis tarefas a vencer. No ônibus, cuidava das mãos, ressentidas do inverno, deixando o cheiro do creme levá-la ao quarto da irmã mais velha, onde embriagava-se de cheiros e cores nos cosméticos bem organizados que não lhe eram facultados. O assento ereto do coletivo lhe dava o momento de maior calma no dia e isso se inscrevia em seu semblante. Abstraía de si e das obrigações para prestar atenção em retalhos de infância, em detalhes das fachadas antigas no centro da cidade. Observava a movimentação nos jardins, as senhoras passeando com seus cães. Passeava ela mesma pelas vidas alheias imaginando as cenas que seguiriam nas suas rotinas a partir dali. Descia no ponto perto da Biblioteca e seguia leve como estudante no primeiro dia letivo, mas chegando à mesa abarrotada de registros, catálogos e fichários, logo toda fluidez dissipava-se e o trabalho atropelado impunha-se cárcere. Tinha vontade de mudar, romper, fazer-se outro ritmo, mas não encontrava brecha na continuidade das horas. Então seguia, como se arrastada pelos cabelos por ponteiros de péssimo humor. No dia do seu trigésimo quarto aniversário por azar uma segunda-feira Paola acordou mais cedo que o costume. Teve chance de escolher com calma a roupa que usaria, antes mesmo de tomar o banho - ritual imprescindível para descolar da pele o sono que vestia suas manhãs desde as lembranças mais remotas. Não tinha pressa e estranhava a sensação, como se calçasse um salto ao qual não estava familiarizada. Deleitou-se, indo vagarosa à cozinha para preparar um desjejum digno de aniversariante. Verificou, porém, sem surpresa ou mágoa, que não havia grandes suprimentos. Ainda assim, ganhava o cheiro do café passando e a saciedade de uns biscoitos amanteigados que poderiam obrigar-lhe a um antiácido no meio da manhã. Sentia-se como quem ingressa num território estrangeiro, ou como se finalmente chegasse à maioridade absoluta, com direito a receber herança e delegar bens. Talvez por isso estivesse autorizando-se uma cota inédita de lentidão, para sorver vapores matinais. Faltavam quinze minutos para as sete da manhã, portanto, mesmo que se levantasse da mesa com todo o vagar, teria ainda tempo para juntar as coisas bolsa, algum casaco, o livro para ocupar o colo no trajeto e, ao invés de correr até a esquina, caminhar sem tumulto para ser a primeira a embarcar. Mas ao passar pelo espelho ao lado do relógio de pêndulo que ficava no corredor entre o quarto e a sala, deteve-se a olhar para o cabelo fora de ordem. Não se importou com o aspecto cansado da pele, mas incomodou-se com as unhas maltratadas e com a cor da blusa escolhida mais por displicência que pela afinidade com o estado de espírito que via inaugurar-se. Respirou. Largou as tralhas que já coletara e foi buscar, lá no fundo das vontades que já tinha esquecido, algum matiz que lhe servisse de propulsão. Enquanto abotoava a blusa roxa, de tecido leve, respondia aos ecos que vinham do rádio no andar de cima com a determinação de presentear-se a firmeza de levar a espinha ereta, a mente um pouco mais quieta e o coração esquecido dos relógios os mesmos que colecionava, cobiçava em vitrines de joalherias e acomodava cuidadosamente na primeira gaveta da cômoda. Aliás, uma das tantas fontes de suas demoras era o titubear na escolha da peça mais apropriada para o grau de afobação que lhe corresse ao sangue no dia. Mas a segunda-feira de aniversário estava em descompasso com aquilo que vinha sendo Paola até então e, depois do calmo café, vendo no pulso apenas a faixa de pele mais clara nudez que a fazia intrigada resolveu manter-se assim despida do controle das horas. Respirou profundamente, já com a mão na maçaneta, e lançou um olhar de desafio para dentro. Então não sabia que decisões são menos que nada se não há o ato? Ria, maliciosa, respondendo o monólogo de sua inofensiva esquizofrenia com promessas que se esboçavam sem contorno preciso, enquanto fechava a porta. Andou sem hesitação e resolveu assim no próprio andar que iria a pé. No caminho podia ser que tomasse outras resoluções instantâneas como aquela: respirava pausadamente, reproduzindo a densidade do relógio de pêndulo que imperava no apartamento, enquanto rumava para longe dele. |
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