PRESENTE
DE NATAL PARA O PLANETA AZUL
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Maria
Luísa Rocha
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Teresa desceu as escadas do prédio em que trabalhava, com muita agilidade e determinação. Sabia que esta noite lhe reservaria trabalho extra e queria que tudo acontecesse como planejara há algum tempo. Fazia anos que não recebia ninguém em seu pequeno apartamento. Tinha seus motivos. Não era de cultivar amizades e gostava da solidão, compartilhada apenas pela fiel companhia do seu gato preto Túlio. Nunca pensou em se casar, apesar de dois sérios pretendentes terem insistido no assunto. Em vão. Os parentes próximos moravam em outra cidade e a vida a separara deles irremediavelmente. Mas era uma mulher feliz. Tinha sua rotina tranqüila e um pequeno vício adquirido há alguns anos, que era beber uns dois copos de vinho, antes de dormir. Era o melhor sonífero que descobrira para as noites insones que costumavam atormentá-la, após a virada dos cinqüenta anos. Naquela noite, Teresa iria receber um casal para jantar. Afinal, era seu aniversário e, desta vez, quis comemorar a ocasião de maneira inusitada. A data natalícia quase coincidia com a véspera do Natal. Ao invés de se aprontar, ir ao cinema e jantar em um restaurante, como sempre fazia, encantando-se com as luzes e enfeites natalinos espalhados pela cidade, resolvera enfrentar a cozinha e preparar a comida para festejar as duas datas em casa, com sua colega e amiga Marília e o marido, o João. Deixara as coisas adiantadas na véspera: o molho da lasanha, o frango temperado e o pavê de abacaxi quase totalmente finalizado, faltando apenas o merengue, para não desandar o suspiro. Chegou a casa, arrumou a mesa, montou a lasanha e pôs o frango no forno. Enquanto assava, foi tomar banho e se aprontou, esperando os convidados. Os dois chegaram pontualmente às oito horas, trazendo um presentinho que Teresa se apressou em abrir, meio excitada: era um livro policial que estava na lista dos dez mais vendidos do mês. Começaram a conversar sobre o trabalho, os colegas e o chefe. Riram muito e se distraíram. Finalmente, foram jantar. O vinho foi servido com fartura durante toda a refeição que, de tão apreciada, quase acabou. Após a sobremesa, o casal levantou-se e se despediram. A festa foi um sucesso e Teresa sentiu-se recompensada, satisfeita e levemente zonza. Sentou-se em frente à televisão, o gato no colo, e começou a ver o jornal. Notícias banais, as de sempre: aumento do preço de remédios, assalto, política. De repente, um plantão: um incêndio avassalador estava destruindo uma imensa floresta na Europa, ameaçando várias casas da cidade próxima. Enormes chamas cobriam a tela do aparelho e parecia que o calor invadira a pequena sala. Teresa sentiu que seus calores noturnos misturavam-se com as centelhas saindo da tela e um terrível suor tomou conta de seu corpo. Abriu a janela e não sentiu a brisa da noite. Angustiada, quis se aliviar, servindo-se de mais um copo do vinho. Sentou-se novamente, sem perder nada das imagens tórridas. E, então, atônita, viu um pequeno cervo fugindo desesperadamente do fogo, numa corrida totalmente inútil. O repórter falava ainda quando o pequeno animal resolveu se livrar de tudo e, ante os olhos incrédulos de Teresa, simplesmente desistiu e mergulhou no inferno. Aquilo foi demais para Teresa. Começou a chorar, desligou a televisão e correu para a cama, soluçando até se engasgar. Teve que se levantar para tomar mais vinho, perseguindo uma anestesia para tanta dor. Estava cansada de ver a mesma coisa todos os dias: terremotos, maremotos, incêndios e destruição. As tragédias se sucediam cada vez maiores e mais assustadoras. Como tudo isto iria acabar ? Teresa finalmente adormeceu, com os olhos vermelhos e a respiração ofegante. O sono tinha vencido sua tristeza, mas trouxe uma cena aterrorizante: Deus, onipotente e soberano, desceu à Terra, magnificamente envolto em luzes e embalado pelo som de trombetas tocadas por milhares de anjos. Imediatamente, ordenou-lhes que comandassem o Apocalipse. Num átimo de segundo, bem ao estilo divino, todos os homens desapareceram para sempre da face da terra. Foi como um passe de mágica espetacular: homens e mulheres, velhos e bebês, todos foram tragados pela decisão divina e dissolvidos para integrar a grande poeira cósmica. Desta vez, não sobrou nenhum Noé... E, assim, ao pó retornaram, definitivamente. Um grande Silêncio instalou-se. Os prédios, os carros, as fábricas, os aviões, as armas, os objetos, tudo parecia se entreolhar naquele cenário horripilante. O pesadelo acabara. Teresa adormecida, ébria de vinho, nem se mexia... Mas havia mais, muito mais... O sonho, o verdadeiro e bom sonho, enfim, aconteceu: Vinte anos se passaram e os animais domésticos, livres da opressão humana, voltaram ao seu estado selvagem e, em bandos, novamente lobos e javalis, refestelaram-se em rios agora despoluídos e cheios de peixes. Mais setenta anos correram, o buraco fechou-se na camada de ozônio e as temperaturas voltaram a ser agradáveis. Os quinhentos anos seguintes reduziram também a pó os estranhos esqueletos de prédios e as carcaças metálicas dos veículos e das armas, e as matas e florestas puderam dominar os espaços que haviam sido ocupados pelas cidades. Finalmente, o planeta estava curado. Deus, arrependido, livrou-o de sua praga, eliminando-a sem piedade, definitivamente. Agora estava tudo perfeito de novo, entregue somente à sábia natureza, sua velha e perfeita obra. Teresa acordou no dia seguinte ao meio-dia. Tomou seu café, deu leite para o Túlio e foi até a janela. Nenhuma brisa de novo. Árvores secas, sem pássaros. Carros e buzinas estridentes nas ruas vizinhas. Teresa estava cansada. Não agüentava mais o calor infernal. Tomou uns dois copos de água gelada e sentou-se, lembrando, resignadamente, que já era sábado, véspera de Natal. Os olhos do cervo engolido pelo incêndio a perseguiram de novo. Entristeceu-se, os olhos encheram-se de lágrimas. Então, possuída por uma intensa e inesperada fé, ajoelhou-se e rezou, pedindo a Deus, quase como uma criança, um presente. Suplicou-Lhe que seu sonho se tornasse realidade rapidamente, pois finalmente entendera que, só assim, os cervos do mundo teriam um feliz Natal pela eternidade. E que, do alto de um céu estrelado, transformada em pequena gota de poeira, poderia contemplar, embevecida, a beleza impecável do azul planeta. Por todos os séculos e séculos. (*) Dedico esta crônica à Ana Masini, que me presenteou com um texto instigante da Revista Superinteressante, trazendo-me alguma inspiração e, finalmente, algumas certezas. Dedico-a, também, a todos os animais do planeta, as eternas e indefesas vítimas da sanha humana. |