O CADÁVER VESTIA ARMANI
Luís Valise
 
 

O coldre encostou na lateral esquerda do peito, e a parte traseira, forrada de feltro verde, irradiava um calorzinho agradável, que ultrapassava o tecido fino da camisa e acalmava o coração. Naquele dia seu coração precisava estar calmo, para não interferir na pontaria quando chegasse a hora.

A pistola Colt 45 negra fora escolhida para não chamar a atenção. E também porque, caso fosse notada, não deixaria ninguém penetrar no perímetro de segurança de 3 metros. Quando alguém se aproxima a menos de 3 metros, você fica sujeito a levar uma facada, uma pancada, uma porrada. E os capangas do Frei Nastá usavam facas, barras de ferro, ou os punhos sem piedade. Não usavam armas de fogo, porque Frei Nastá julgava ser a morte prerrogativa do chefe. Os brutamontes apenas machucavam, cegavam, traumatizavam. Acreditava que assim infundia medo nos inimigos. Infundia mais: pavor. Por isso seus homens buscavam os olhos dos inimigos, com seus punhais; seus joelhos, com as barras de ferro; os tendões dos seus calcanhares, com suas facas afiadas como a maldade. Assim aumentava a legião de cegos, mancos e capengas, todos estropiados, pagando a comissão estipulada com voracidade pelo capo.

Contra tipos como esses fora criada a 45, capaz de parar o ataque de um homem, por mais que este esteja enfurecido, determinado, ou dopado. Na Guerra Mundial de 14-18, a primeira, os combates eram travados trincheira por trincheira, na ponta da baioneta, uma sangueira que só vendo! Os americanos resolveram o problema com essa pistola. Quando o inimigo vinha em sua direção com toda a fúria projetada no grito de ataque, um tiro de 45 jogava-o para trás como um coice no peito. Não tinha erro. Quando um homem via a boca da 45, sabia estar marchando para o inferno.


Terminou de carregar a arma, lustrou-a com a calça do pijama de flanela, sentiu o perfume adocicado do óleo lubrificante, e guardou-a no coldre de couro macio. Em seguida vestiu o paletó de lã, folgado o suficiente para conter o canhão, deu um olhar para a mulher no porta-retrato sobre o criado-mudo, e saiu.


O outono se aproximava do final, e as calçadas estavam cobertas de folhas cor de mostarda, que se espalhavam ao redor dos seus sapatos de cromo alemão. As árvores estendiam seus galhos nus para cima, rendidas à passagem do homem alto, que vestia terno de lã cor grafite, camisa azul-claro e gravata de jacquard de seda bordô. Preferira vir caminhando, imaginando que a turma do Nastá estaria de olho no seu Jaguar prateado. Chegando a pé poderia entrar pelos fundos, e esperar pelo miserável sem ser notado. O ar frio entrava em seus pulmões, e saía pelas narinas formando duas pequenas colunas de fumaça. Aproximava-se do night-club caminhando rente à parede, protegido pelas sombras da noite. Dobrou à esquerda num beco estreito, depois à direita, tendo o cuidado de desviar dos latões de lixo. Os fundos da boate estavam desprotegidos, nenhum gorila à vista. A maçaneta girou sem ruído. Entrou, e à sua frente um corredor com chão de ladrilhos sujos se estendia até uma porta com visor, como uma escotilha de navio. Teria que atravessar a cozinha sem despertar suspeitas. Afrouxou o nó da gravata, desabotoou o colarinho da camisa, abriu o paletó e colocou a pistola na cintura, bem à vista. Achou que assim pareceria um dos gorilas do Nastá. Entrou na cozinha e caminhou devagar entre os fogões e as mesas, mascando um chiclete imaginário. Ninguém prestou atenção à sua passagem. A outra porta dava direto no ambiente escurecido do cabaré. Rapidamente se recompôs, e guardou a pistola junto ao peito. Sentiu gotas de suor se formando no alto da testa. Enxugou-as. Examinou suas mãos, notou que estavam firmes. Não sabia quantos tiros daria, mas não podia errar o primeiro. Um garçom ofereceu uma mesa, sentou-se de costas para a parede. Havia muitas mulheres, todas lindas e bem-vestidas. Frei Nastá era também o maior cafetão da cidade.

Aos poucos foi se acalmando. Ainda era cedo, o crápula chegaria mais tarde. Uma garota sorria com insistência. Chamou-a com um aceno de cabeça. Cabelo estilo chanel, vestido de seda, mãos macias e nome de guerra: Jéssica. Tirou um cigarro da bolsa, e ficou esperando pelo fogo. Ele chamou um garçom, pediu o isqueiro emprestado. Jéssica usava um anel de ouro, grande, quadrado, com pequenas esmeraldas formando a letra "J". Ele bebia uísque, ela pediu Campari com gelo. Vermelho no copo, vermelho nos lábios, ela parecia mesmo quente. Ele não prestava muita atenção em sua conversa, seus olhos esperavam a chegada do patife. A garota pousou a mão na sua perna, ele apertou suas coxas, e segurou seu braço quando ela tentou acariciar seu peito. O peso da arma afastava o desejo. Jéssica pediu outro Campari. Ele precisou ir ao banheiro. Não podia beber muito, este uísque seria o último. Jéssica falava, falava, e sua voz parecia distante, cada vez mais longe. Notou quando três homens entraram pela porta dos fundos. As roupas grosseiras denunciavam os gorilas. Frei Nastá devia estar chegando. Ficou com o olhar pregado na porta de entrada. Ouvia a voz de Jéssica flutuando em sua cabeça, quando ele chegou. Alto, sobrancelhas espessas, negras, queixo um pouco torto. Deslizou a mão por dentro do paletó, agarrou a coronha da Colt, e quando o facínora chegou mais perto, quase dentro dos 3 metros fatais, tentou levantar-se e sacar a arma, mas suas pernas não obedeceram. Seu corpo tombou para a frente, derrubando o copo de uísque. O braço parecia pesar muitos quilos. Lutava para manter os olhos abertos, quando ouviu a voz do gangster:

- Boa-noite, idiota.

Dois gorilas se aproximaram pelos lados, pegaram-no pelas axilas, e o arrastaram para a porta dos fundos. Lá fora o beco estava mais escuro, e mais frio. Encostaram-no junto à parede. Suas pernas mal conseguiam manter o corpo em pé. Frei Nastá se aproximou, meteu a mão grande e ossuda sob seu paletó e puxou a Colt. Jéssica surgiu na porta, o grande anel brilhando na escuridão. O quê ela tinha colocado em seu uísque?

Frei Nastá deu três passos para trás, para evitar o espirro de sangue, e sussurrou:

- Tem alguma coisa a dizer?

Ele viu a boca negra da 45. Sabia que iria para o inferno. Que poderia dizer? Arrumou o nó da gravata, abotoou o paletó, e murmurou:

- O roxo fica proibido.