O
DIAFRAGMA DE ANITA
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João
Gilberto Engelmann
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Não se vêem mais tulipas como as que Irdes vislumbrava por sobre a inofensiva cerca de verdes arbustos que lhe dividiam o pátio ao de Marres. Nem sol como o que naquele dia brilhava; nem cantos dos bípedes plumados de um circo que pomposamente inclinava por sobre o cercadinho. Nunca, aliás, viu-se Irdes de tão lívido humor; de tão fragrante néctar borrifado ao encontro de suas axilas tão bem limpas. Irdes estava como nunca; todo o cerco do mundo estava, naquele irrepetível momento, esplendido. Irdes estava, perceptivelmente, desconectada do incidente, que já fazia aniversário de uma semana, quando o homem que o destino lhe deu como marido a insultara de filósofa. Disse-lhe ser ela a personificação do descaso; Irdes até chorou. Agora, quando as flores pareciam-lhe existir exclusivamente, toda prédica conjugal daquela terça-feira cinza dormia-lhe em um recôncavo perdido em meio aos seus neurônios. Estava ela feliz. Não que tudo convergia a seu favor; até que elencavam-se inúmeras intempéries de um tempo que, fora aquele momento, não lhe dava muito crédito. Marcelinho precisava um urgente check-up aos 6 anos de idade; Denétio, seu algoz e marido estava desempregado e sem recursos para repor os pratos quebrados no sucedido da semana passada; Bimem, seu amado felino Ciamês estava com diarréia a três dias; além do teto do banheiro estar podre de tanto Marcelo Neto brincar de marujo quando de sua vontade. Mas nada agora é lembrado. Irdes está, simplesmente, bem. Sem a preocupação gastronômica da janta, uma vez que papai levara o filho único para o clube Space Happy e por lá beliscariam as bobagens que homens, quando reunidos, comem, e por ela própria, Irdes Lacerda, não estar com fome, ficaria mais um pouco a conversar com as tulipas, que aliás eram raras por ali e que somente Marres as possuía devido as sementes que lhe tinham sido presenteadas por uma comadre. Conversa boa aquela. Tulipas lhe davam intrigantes conselhos e que ela considerava os melhores; até melhores que os de Marres, sua amiga já faziam onze bem vividos anos. E não por nada que gostava tanto delas, as tulipas; mas Irdes tinha pra ela, que a afeição não era recíproca. Ao que tudo indicava, tais flores não lhe achavam cara, uma vez que nunca quiseram se exibir em seu jardim, apesar de todas aquelas tentativas ao longo daqueles longos anos bem vividos. Mas o quê? Nenhum suposto sentimento de ingratidão por parte das tulipas lhe tirava a leveza que lhe apossava a alma. Até o sino da igreja do reverendo Matoso, que costumeiramente lhe irritava por seu som de lata e que agora badalavam, fazia-lhe desistir do monólogo, que segundo Irdes era um diálogo, visto que as tulipas lhe eram conselheiras, em que estava compenetrada; nem mesmo o conhecimento de que Denétio chegaria mais tarde para lhe insultar de filósofa, lhe arrebatava o sossego. Pensava Irdes ser a filosofa sim. Isso até lhe soava bem, afinal como se diz à boca pequena, os filósofos são inteligentíssimos. Meio doidos, mas inteligentes. De sua loucura Irdes não estava certa, mesmo já acumulando críticas pelo ato de falar com as tulipas. De sua inteligência já tinha se convencido no último Natal quando fez questão de contar de cor todo o itinerário do Papai Noel ao longo da História. De fato, o Papai Noel uma vez existiu lá no Pólo Norte, contava convencida à toda família reunida. No entanto, ali, agora, nada lhe era tão importante. Nem inteligência, nem Filosofia, tampouco o teto do banheiro que esperava ancioso por uma reforma. Pensava: Estou relaxando; gostava de usar essa expressão, afinal foi a Hebe quem a disse, supostamente, em seu programa. Irdes tinha sua originalidade, mas não escapava, ora, de algumas boas influências. Estava curtindo seu tempo. Tempo este que lhe parecia estar parado. Tão verdade era, que não tinha mais assunto para conversar com as tulipas de Marres, que aliás tinha ido visitar o Dr.Manfredo por conta de uma alergia que lhe surgiu nas faces. Marres até tinha acusado as tulipas de serem as causadoras dessa enfermidade que não lhe tinha permitido ir ao casamento de sua mãe que, viúva, decidiu por casar-se de novo. Irdes, como uma amiga íntima das tulipas, as tinha defendido usando de sua capacidade, como dizia Denétio, filosófica para convencer Marres do contrário. O importante era que, sendo pela sua filosofia ou não, as lisonjeadas flores continuariam a servirem-lhe de confidente. Até o sol evoluiu em um lindo crepúsculo. Tudo a sua volta convergia para que ela voltasse a sua rotina. Menos é claro as tulipas, que tanto à noite como ao dia mostram-se exuberantes e encantadoras na definição de Irdes. Mas segundo ela, que cada vez mais estava tomando gosto pela Filosofia de que tinha sido insultada, a vida é um eterno ir e vir, e o permanecer só é possível em frente as tulipas. Irdes levantou-se de seu berço esplendido e dirigiu-se a sala. Ligou a TV e começou a assistir, já na segunda parte, um seriado espanhol com o sugestivo nome de " O Diafragma de Anita". Depois dormiu no sofá. Sonhou com tulipas e com Anitas... |
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