O CONTO DE FILIPE
Eduardo Prearo
 
 

Filipe arrotou e o gosto do arroto remeteu-o a alguma paixão perdida no tempo. Surtou na festa onde estava. Depois, não houve alternativa a não ser disfarçar e imaginar que ninguém, absolutamente ninguém, notara-o surtando. Voltou para casa de táxi. Casa, casa. Na verdade, Filipe jamais iria ter casa própria, era óbvio. Tinha uma casa, ou melhor, um apartamento alugado, e os vizinhos ainda não haviam reclamado dele. Um homem histérico e fumante não era uma coisa muito rara de se encontrar, mormente na cidade grande chamada São Paulo. Filipe era andrógino ou afeminado, sem os traços fortes. As mulheres não viam nada de homem nele, nunca. Nessa mesma noite, voltou para casa e logo saiu de novo; foi para um hotelzinho assistir a uns filmes pornográficos em que travestis comiam homens musculosos. Lembrou-se da festa, do Elvis bundudo cantando Don't be cruel. Elvis era seu pai e ninguém sabia. Elvis não morrera, estava escondido, com trocentos anos, em ilha do pacífico. Filipe sentou-se defronte da máquina de escrever e iniciou um conto; um escritor-lixo também podia escrever conto. E o conto que ele, um joão-ninguém, iniciara, era de terror ou coisa parecida. Terror só para ele. Isso, o hotelzinho fornecia máquinas de escrever a escritores-lixo. E Filipe desistira das máquinas de escrever de bolso, pois não gostava de teclar com palitos de fósforo. Abriu a janela e sentiu a mesma brisa que sentira na juventude. De súbito, o telefone tocou: era a recepcionista que lhe disse sem mais nem menos que o hotel não trabalhava com garotos de programa. O garoto de programa aqui sou eu, meu bem, foi a resposta do pequeno Filipe. O sol acabou raiando a contragosto, e Filipe vomitou tudo o que comera, por causa do red label, da janela. O jovem escritor tinha muito nojo de tudo, por vezes, até de si mesmo. Cá agora está o conto de terror dele...

Era uma vez um homem que se achava muito mal e que tentava a todo custo ser bom. Em uma bela manhã de outubro, ele teve um desmaio enquanto tomava uma ducha. Aconteceu então um transporte físico no tempo jamais visto na história da humanidade. O homem, que se chamava Lindo, acordou em um futuro distante, no próprio banheiro onde caira. Abriu a porta e viu na sala pessoas estranhas; aquela casa não lhe pertencia mais. Respirou fundo e pulou a janela. A cidade não mudara muito, mas estava vazia. Não havia ninguém andando pelas ruas a não ser um homem com cara de retardado, que quando viu Lindo, foi logo falando:

– Os doentes mentais dominaram o mundo. Os doentes mentais não são mais rotulados de doentes mentais. Você me parece um daqueles rotulados de sadio, não tem cara mongólica. O grupo de sadios que foram queimados nas fornalhas ultrapassavam a quantidade de um bilhão. Vamos brincar? Quer me namorar?

– Oi, meu nome é Lindo. Quem é o cabeça aqui?

– O cabeção?, o cabeção? Ué, o cabeção é o nosso presidente, o Orcalino. Você parece um sadio, que horror!

– Neste país eu não tinha direito nenhum quando ficava pobre. As obras de misericórdias corporais não me ajudavam, a não ser que eu estivesse perdido em um rebanho de miseráveis, imperceptível. Não sei como, mas sei que estou no futuro.

– Desculpa, Lindo. Não parece mas você é um dos nossos. Veio do passado, não é? Que legal, eu entendo. Que tal irmos a um shopping para ver as beldades fazerem compras?; ultimamente esse é o meu hobby favorito, sabe?

– O quê? Ver mulheres mongolóides deslumbrantes fazendo compras?

– Os fora–da–lei daqui são denominados sadios, está bem?

Lindo apartou-se do "esquisito" e foi andar pela cidade deserta. É, teria de montar cabana ali naquela época. Talvez nesse futuro não sobressaisse como bandido. Olhou seu reflexo no vidro de uma loja e desmaiou. Acordou na época de que viera; enfim, estava de volta. Uns trombadinhas roubaram os últimos vinténs dele. Voltou para casa aturdido, tomou banho, era outro. Dormiu no sofá esmeralda, completamente esfacelado. Levantou-se, após dezoito horas de sono, olhou-se no espelho e viu-se com cara de leão. Agora sim, era um animal, um animal bobo. Fim.

Filipe não tomava red label porque vomitava: idiossincrasias de um alcoólatra. Foi embora do hotel gritando catzo. Ele pensava que trabalhava de mais em um sub–emprego, mas as horas extras não eram pagas, iam para o banco. E nesse sub-emprego, diziam que ele gostava de certas pessoas, mas ele nunca dissera que gostava delas. Na verdade, Filipe não gostava de ninguém, talvez nem de si mesmo. Tinha uma telepaixão por Shirley e fazia "telessexo" com ela, mas a guria sabia disso? Hoje Filipe está parado, sem forças. Quem quiser ajudá-lo a ter uma casa própria – esse vagabond! (sic) – deposite uma graninha na conta 10.611–9, agência 2947–5 do Banco do Brasil. Ok? Brincadeirinha... ... ...