FOME
Daisy Melo
 
 

Uma sensação estranha na boca do estômago. Vai para lá, e para cá como uma bola de pingue-pongue. Não, não é dessas normais que basta comer um biscoito ou uma fruta que passa. É fome de feijoada, mocotó, dobradinha com batatas. É fome de muito tempo. De vida inteira. Tênis velho, mochila e uma calça azul e desbotada. Liberdade e trancinhas no cabelo. Vou matar minha fome de como já não sou.

Desço a rampa do Fórum tropeçando nos saltos altos. O blazer de linho bem cortado, a saia nem curta, nem comprida, mostra exatos 3 dedos de perna acima do joelho. Cabelos bem escovados. Tipão de mulher resolvida, segura, emancipada. Rá! Só a cara. Por dentro a bola pinguepongueia mais que em campeonato chinês. Uma dormência no anelar da mão esquerda, como se tivessem arrancado o dedo. Os nervos despencam do coto inexistente. E a fome... a fome não a deixa pensar em mais nada.

Pensando bem é um vazio, uma angústia. Ou um cheio, um completo. Um balde de mágoa. A lágrima desrespeitosa cisma em desbotar a visão. Mais um pouco me desmilingüo e sem pudor rompo em soluços. Não. Não vou chorar.

Faço sinal para o táxi. Vá em frente, peço, Zona Sul. Ou Zona Norte. Tanto faz. Leve-me para um lugar onde não existam lembranças. Aonde eu possa... comer. Isso. Leve-me a um restaurante. Aquele chique, no Leblon, porque eu tenho dinheiro suficiente para calar a minha boca e não reclamar. Bom apartamento, filhos criados e independentes. Pensão mais que merecida, pois o que sobra depois de tantos anos? O que resta da gente após o divórcio? Uma pensão mais que merecida. Afinal somos todos educados e racionais. Ou viramos uma meleca mole e grudenta como um suflê de chuchu.

Ocuparei meu espaço e meu estômago. Vou pedir lagosta com purê de batatas. Molho gratinado por cima. Um bom vinho francês, branco, demi-sec. Vou matar a minha fome de carinho, de amor com arrepios na nuca. De sexo. Vou deixar morrer meu vazio de olhares noturnos, de lua nova, lua cheia, crescente e minguante. Minha fome de pores-de-tarde (quando a gente saudava o sol em Ipanema). Olhar no olho, caminhadas de mãos dadas. Tínhamos o mundo todo à frente. Vou matar minha fome de respeito. De ser mulher. Feijoada, mocotó, dobradinha com batatas.

Uma fome de muito tempo. Fome de vida inteira.