UM PROFETA NO PRESÉPIO
Claudia Sanzone
 
 

- Isaac, alguém se aproxima... Observe!

- Não vejo coisa alguma, Rebeca.

- Ah, sim. Esqueci que você quase não enxerga quando está ruminando.

- Mesmo que eu estivesse em jejum, não seria fácil para alguém da minha idade, ver alguma coisa nesta escuridão.

- Pelas barbas de Moisés, aquele lá é o Jacó!

- Não é possível! Deve ser esse chocalho que badala no seu pescoço o dia inteiro e anda embaralhando suas idéias. Jacó disse que nunca mais sairia de Jerusalém. Foi categórico. Não se lembra disso?

- Sei... Mas aquelas orelhas um pouco voltadas para o lado e aquele andar vagaroso só podem ser do Jacó.

- Agora consigo distinguir melhor. Ele conduz uma mulher e há um homem caminhando ao lado... Repare bem, Rebeca.

- Acho que os três vêm justamente para cá.

- Temos pouco capim e o feno não aparece faz dias. Espero que esse jumento não seja um glutão!

- Que maneiras, Isaac! Procure ser educado, eles estão vindo.

- Boa noite. Desculpem-nos por chegar em momento inoportuno, pois sei que é tarde da noite.

- J... Ja... Jacó?

- Sim. Deixe-me ver... Rebeca?

- Eu mesma! De longe reconheci você. Como esta Palestina é pequena! O que o trouxe aqui, criatura de Jeová?

- Uma delicada missão. Fui encarregado de trazer essa jovem senhora gestante e seu dedicado companheiro até Belém. A criança nascerá aqui. Depois seguiremos viagem.

- E qual será a recompensa por esse trabalho todo, Jacó? Você não quebraria a promessa de não sair mais de Jerusalém a troco de nada...

- Isaac! Pelo amor de Jeová, não seja tão indiscreto!

- Não se preocupe, Rebeca. Ah... velho amigo Isaac, você não muda! Sempre pensando que nesta vida tudo é assim: olho por olho, dente por dente.

- Claro, meu velho amigo Jacó. Nada vem de graça, tudo no mundo tem seu preço!

- Eu também pensava assim, mas hoje posso dizer que sou um outro asinino. Muita coisa mudou depois que recebi a nobre incumbência de transportar o messias antes mesmo de seu nascimento.

- Explique-se melhor, Jacó. Não dê importância aos comentários de Isaac. Que história é essa de incumbência e messias?

- Bem, vou contar como tudo começou. Sempre lamentei a fama de pouco inteligente atribuída à minha espécie. Nós, jumentos, somos ávidos por conhecimento e, quando empacamos, ruminamos mais as idéias do que o próprio capim. Mas os homens não sabem disso e nos julgam imbecis.

- Bem sei do que se trata. Aliás, nunca me conformei com tamanha injustiça!

- Até que um dia, querida Rebeca, alguém comentou comigo sobre os conceitos de um certo filósofo chamado Platão. Tive ganas de aprender as idéias que aquele homem havia difundido em Atenas. Mas como entendê-las se não falo grego e meu aramaico quase não dá para o gasto? Fiquei deprimido e comecei a pensar que a vida não tinha mais sentido.

- E então, Jacó, o que fez tudo mudar? Diga-me!

- Tenha calma, senhorita. Vocês cordeiros são solícitos, mas um tanto impacientes também. Bem, o que mudou minha vida foi uma aparição que se dizia um anjo. Só dei ouvidos àquela presença porque trajava rutilantes asas, o que me deu a certeza de que pertencia, em parte, ao nosso grupo, dos animais. Ele foi bastante objetivo e declarou que em breve nasceria um homem deveras importante para toda a humanidade. Pensei cá com os meus cascos o que eu teria a ver com aquilo. Acho que ele lia meus pensamentos! Pediu que eu não me espantasse, que minha função seria conduzir a mãe, prestes a dar à luz, e o marido dela, pai terreno do menino especial, até Belém. Explicou que todo o tumulto que havia em Jerusalém fora provocado pelo recenseamento determinado pelo Rei Herodes. Avisou que precisávamos sair dali o mais rápido possível. Acatei submisso todas as ordens do mensageiro, mesmo que eu não estivesse compreendendo ao certo o que se passava. Antes que ele partisse, veio a surpresa...

- Conte logo, Jacó!

- A surpresa era uma recompensa pela minha resignação diante da missão que me fora incumbida. O anjo me presenteou com um dom, embora soubesse do meu sonho de aprender a filosofia grega. Afirmou que a providência divina se encarregaria de enviar ao meu pensamento antevisões até um futuro bem adiantado.

- Jeová seja louvado, você se tornou um profeta!

- Exatamente, Rebeca. No caminho para cá as previsões foram germinando aos poucos na minha mente. Só então consegui alcançar o objetivo nobre do que me aconteceu. Sinto-me profundamente honrado porque conduzi o filho de Deus, o messias! Jesus Cristo será seu nome. Vai tirar os pecados do mundo, fará milagres em nome do Pai e vai trazer a palavra de Deus!

- Desculpe minha intromissão na conversa, Jacó. Estou ficando um bovino ancião, caminho com dificuldade e nem sei se resistirei ao próximo inverno, mas essa história não faz sentido para mim. Nós judeus sabemos que um filho de Jeová poderia nascer de pais humanos, mas não seria dotado de poderes sobrenaturais, não faria milagres. Não é permitido haver um intermediário entre Jeová, que é único, e o homem. Isso tudo contraria os princípios de nossa religião...

- Sei disso, Isaac. Há uma vida de sacrifícios esperando por Jesus Cristo que morrerá jovem. Porém não jovem demais para que suas palavras não se imortalizem. Iniciará uma nova religião e será respeitado por boa parte da humanidade.

- Essa discussão entre vocês me deixou atônita, de cabeça quente. Tenho a sensação de que minha lã vai chamuscar!

- Você é bastante jovem, Rebeca. Ainda há muito o que compreender pelo resto de sua vida. Bem, Jacó, vou descansar para poupar as poucas energias que me sobram. Eles resolveram deitar a criança bem no meu almoço de amanhã!

- Você e Rebeca podem se recolher. Ficarei de vigília. Em poucos dias virão três homens para visitar o menino. Recebi a informação de que precisaremos partir em seguida.

- Já?! O pobrezinho ainda é tão frágil... Pode retirar um pouco da minha lã para proteger o recém-nascido, se quiser. Aonde irão?

- Obrigada, cara Rebeca. Iremos ao Egito.

- Será que eu ouvi bem, Jacó? Ao Egito? Então mande lembranças para o Ismael! Aquele camelo herdou uma fortuna depois que se casou. Sua esposa descende de uma família de camelos que pertenceram à Cleópatra. Ele ainda deve estar por lá, vivendo do bom e do melhor!

- Mandarei suas saudações, Isaac. E você, Rebeca, tem algum recado para alguém?

- Creio que não...

- Boa noite, então. E... Feliz Natal!

- QUÊÊÊ?!!!!

- (Ops!) Esqueçam.