OS CANTEIROS DE CRISÂNTEMOS
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Carlos Bruni
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...Não
sabia que destino tomar. Desde criança, queria conhecer o mundo. O que dele sabia era através das gravuras nos livros e isso o fazia dar asas à imaginação sonhando com terras distantes, vivendo aventuras excitantes e que um dia, imaginava, descreveria num livro. Sempre que ia à praia sentava-se na areia e ficava a contemplar o horizonte. Seus pensamentos viajavam tentando adivinhar o que haveria para além do fim do mar. Cresceu e seus sonhos nunca morreram. Viu, então, que era chegada a hora de ganhar o mundo, realizar seus projetos. Fez-se viajante; saiu de casa e aventurou-se pelos caminhos. Viajou de carona, percorreu longas distâncias à pé. Dormiu em lugares estranhos, trabalhou em troca de um prato de comida; tudo em nome de seus ideais. Anotava tudo que seus olhos viam. Seu diário crescia mais e mais entre cada nascer e pôr-do-sol. Em tudo ele se fascinava. Viu terras ricas onde mesmo os menos afortunados podiam viver com decência. Andou por terras pobres onde os poucos ricos viviam sem decência e os humildes sobreviviam até onde a sorte madrasta lhes permitisse. Pisou terras ensangüentadas; irmãos lutando entre si. Algumas guerras pareceram-lhe tão estranhas quanto absurdas. Matavam-se em nome de seus deuses, como se estes os abençoassem por isso. O viajante não entendia porquê. Foi perseguido em algumas partes; bem recebido em outras. Mas um dia, cansou. Correra o mundo ano após ano, tantos foram, e viu chegada a hora de voltar, contar o que vira, ensinar o que aprendera. O viajante voltou. Teve enorme surpresa. Sua cidade, outrora tão pacata, crescera assustadoramente. Prédios enormes subiam de todos os lados, quase tocando as nuvens. Largas avenidas rasgavam as entranhas daquilo que fora um lugar tão acolhedor. Que é feito de minha rua?, perguntou-se incrédulo com o viaduto no lugar onde ficava a casa da namoradinha. Lembrou-se da pracinha no fim da rua, com seus canteiros de crisântemos. A flor de ouro, porém, não mais florescia ali. Desalentado, olhou para o concreto cobrindo quase toda a terra e no pouco que ficou à mostra, espetaram-lhe árvores mirradas, lentamente digeridas pela fumaça de óleo diesel. Deve haver coisa melhor, pensou. Foi andando pelas ruas entupidas de gente; todos de cara fechada, ninguém olhando para ninguém. Uma cidade sem sorrisos. Tudo o espantava. Mendigos caídos em becos, sujeira amontoada pelas sarjetas. Parte do mundo lá de fora voltava-se para dentro do seu. Decepcionado, embarcou num ônibus qualquer; queria ir para longe. Lembrou-se dos arrabaldes do seu tempo de menino. A vida ali era mais tranqüila que a de seu próprio bairro. Ainda que longe, o aumento da distância era proporcional à sua vontade de viver. O ônibus rodou, e rodou, e rodou levando-o para os subúrbios parecendo agora mais longínquos, sempre empurrados pela cidade na sua fome de crescimento, fazendo-o sentir-se cada vez mais distante da tranqüilidade desejada. Ruas mal calçadas, casas decadentes, barracos mil à beira de córregos que um dia foram de águas límpidas. Crianças desnudas e mulheres esquálidas carregando latas dágua na cabeça. Bares cheios de desocupados tomando a cachaça amarga e esperando pelo fim do dia e pelo fim. Desceu do ônibus e meio a um calor nauseabundo e sufocante. De monturos de lixo moscas voejavam para um tabuleiro de carne vendida ao ar livre, tão imundo quanto seu próprio dono. Pessoas mal-encaradas o olhavam, outras o ignoravam por completo. Andou por ruas de terra com fios de águas servidas riscando nelas desenhos tétricos. Janelas se fechavam à sua passagem. De outras, olhos tão somente espiavam. Estava desorientado. Não era aquilo que esperava reencontrar. Como poderia descrever tal horror num livro e dá-lo aos amigos? Voltava para um mundo mais terrível que outros vistos lá fora. Não sabia qual destino tomar. Para qualquer lugar que fosse, não teria como fugir daquele pesadelo. Então, ele a viu. No meio daquela multidão, uma menina. Frágil, vestido roto, vendendo algumas flores. Ela aproximou-se e estendeu seus braços magros oferecendo-lhe um maço de crisântemos, quase tão murchos quanto sua própria existência. Compra, moço? É pra me ajudar. As lágrimas do viajante não foram suficientes para dar vida àquelas flores. |