UM
NINHO VAZIO
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Antonio
Carlos Vellasques
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Há
coisa de dois anos um casal de sabiás veio alegrar a garagem
de casa. Foi tudo bastante rápido, acho que havíamos viajado
por alguns dias, e ao entrarmos em casa notamos a revoada assustada
dos dois bichinhos dentro da garagem. Não foi de modo nenhum
nossa intenção assustá-los, porém ao se
verem flagrados trataram de sair rapidamente de cima de um vaso de plantas
que jazia a um canto alto no fundo da garagem. Em nossa ausência
haviam construído um enorme ninho no vaso, aproveitando gravetos
de outras plantas.
Incrível a capacidade dos animais de construírem para si abrigos e ninhos tão estudados e planejados; nenhum arquiteto seria capaz de tal feito sem uma dose muito grande de estudo e dedicação, e no entanto eles trazem já no subconsciente as fórmulas e técnicas necessárias à empreitada. Deus quando os criou estava com certeza querendo nos deixar lições de humildade que ainda custamos a entender. Com o passar das semanas notamos certa inquietação no ninho. Evitamos bisbilhotar o que estaria ocorrendo com medo de espantar nossos maravilhosos hóspedes. De fato, os dois grandes sabiás já davam mostras de estarem se acostumando com minha família; as revoadas haviam praticamente cessado, o medo parecia haver dado lugar à confiança. Era curioso que sempre que um ia buscar gravetos ou um inseto, o outro ficava a velar no ninho. Numa das raras vezes em que ambos haviam saído arrisquei-me no alto de uma escada: vi três ovinhos coloridos. Exultamos de alegria, teríamos alguns filhotes nascendo em pouco tempo. E assim foi. Em questão de dias, apesar do cuidado dos pássaros em esconderem o fato, entre os ramos da planta podiam-se ver nitidamente três frágeis filhotinhos, lindos demais. Bem, na realidade dava para notar apenas os bicos dos três filhotes, e sempre abertos. A alegria e os cuidados foram indescritíveis naqueles dias. A garagem foi praticamente interditada, colocamos os carros na área externa do condomínio, e estabeleceu-se uma vigilância marcial para evitar que alguém passasse por ali. Fomos praticamente despejados pelos novos inquilinos. Até o pobre do nosso cãozinho teve de se adequar, sendo-lhe proibido passar perto do local. Temíamos que algum filhote caísse daquela altura e virasse picadinho nos dentes do Bidu. A garagem era o território exclusivo dos passarinhos, que agora estavam muito à vontade, manifestamente desdenhando nossa presença; haviam-se tornado os donos do lugar. Com o passar dos dias os bichos foram crescendo, e a um ritmo muito acentuado. Com enorme dificuldade a mãe conseguia acomodar-se sobre os três filhotes, não sem algumas bicadas de protesto e muita gritaria; o ninho visivelmente estava tornando-se pequeno. A alimentação também se tornara ininterrupta, contínua, o casal de sabiás na azáfama de entrar e sair do ninho carregando insetos e minhocas que nunca saciavam a fome dos enormes filhotes, agora quase do tamanho dos pais. A situação ameaçava ficar ingovernável. Numa linda manhã de sábado acordei razoavelmente cedo para meus padrões, e coloquei-me a fazer café. Havia notado certo silêncio na garagem, mas devo ter atribuído isso à familiaridade que os sabiás haviam aprendido a desfrutar de nossas presenças. Eles haviam perdido o medo. Um tanto curioso, entre uma e outra dentada numa fatia de mamão, resolvi espiar meus queridos inquilinos. Abri a porta que liga a cozinha à garagem e nada! Não havia mais viva alma no ninho, para meu desespero. Nem filhotes, nem os pais; eles haviam sumido, simplesmente. Acordei a família toda, e provavelmente metade do condomínio, e colocamo-nos a procurar os pássaros. Alguém gritou a um canto: lá estavam, ciscando no gramado anexo à minha residência, os nossos cinco lindos amiguinhos. Mantiveram a fleuma, ignorando nossas presenças olimpicamente enquanto comiam, depois sem aviso nenhum voaram para bem longe. Nunca mais os vimos. Meu filho Eduardo casou-se neste sábado com a linda Gislaine, filha de um casal muito especial, amigos nossos. Foi a primeira experiência tanto para mim e minha esposa quanto para o casal de amigos: ver o primeiro passarinho voar para fora do ninho. A mesma criaturinha que a gente havia criado por tanto tempo, com tanto amor, agora estaria tomando seu próprio rumo, agarrando as rédeas do próprio destino. Eduardo e Gislaine saem do ninho para não mais voltar; formaram um novo ninho, como tem que ser a vida. Os votos, é claro, é de que sempre estarão por perto, não faltarão visitas, mas sabemos que isso não irá ocorrer. A razão indica que a vida irá subtrair-lhes o tempo para isso, e que o destino dos velhos é sempre o ostracismo e o recolhimento. Talvez no início ainda haja uma ou outra visita, mas com o tempo teremos que nos acostumar com a idéia: acabou. E é bom que seja assim, afinal depois de certo tempo o ninho fica mesmo pequeno para conter os mesmos filhotes. A natureza, entretanto, é mais sábia que os homens. Enquanto estes deixam seus filhotes voar para o mundo e a esperança, os sabiás da minha e de outras garagens sempre saem todos juntos de uma única vez. Quem deve ser abandonado é o ninho, nunca os pais. Sábia lição. |