A FILHA DE AFRODITE
Thiago Tenório Cavalcanti
 
 

Naquela cidade do interior, deitada assim no pé da Serra, os meninos não tinham muito o que fazer de bom pra pecar. Fumavam uns cigarros, tomavam vinho barato e saiam de carro pra caçoar dos pobres trabalhadores que voltavam de bicicleta à beira da estradinha, estalando ovos podres nos coitados que ainda cheiravam a cimento e também lenhando suas costas com tapetes borrachudos dos carros; depois passavam em frente a alguma igrejinha com pastor e um fiel e gritavam lá pra dentro obscenidades.

Naquela outra noite qualquer, três meninos desses, foram dar diante dum casarão velho, em ruínas, tendo só uma luz sinistra na porta pra se notar no meio de tanto breu meu deus. O mais assanhado na hora tremeu, hesitou, e foi o mais acanhado que tomou a frente e resolveu ir entrando como parente distante que sem dar com os donos da casa vai pedindo licença e se chegando. O terceiro menino ria nervosamente e fazia piadinhas ridículas como se essas piadinhas fossem luz de vela pra guiá-los naquele antro nojento, nem me fale.

Que cenário decadente os meninos presenciaram: um salão de cimento frio e seminu, tinha lá umas mesas enferrujadas, uma poltrona pedindo sabão e no fundo um balcão de bebidas, onde uma loira enrugada, porém solidária ao ambiente, pois mantendo a proposta também era arruinada e triste como as paredes e tudo mais daquele espaço, tirava cartas pra si própria. Talvez a única coisa presente com um pouco de dignidade fosse a música que tocava na altura do chão, baixinha, como se distraindo os ouvidos também pudesse distrair os olhos.

- Boa noite, diz qualquer um dos meninos.

- Boa noite, a loira enrugada.

- A gente tava passando... isso aqui é o quê?

- A gente tem umas meninas que dançam aqui. Mas agora acho que só tem uma na casa.

- E como que é o esquema?

- Aqui só tem dança, quem quiser tem que combinar com elas por fora. A gente até tinha uma casa, mas a polícia bateu lá. Agora elas trabalham por fora.

- Tamô só olhando mesmo.

Os meninos conversam entre si.

- Vambora?

- Pede uma cerveja antes, sei lá.

- Quanto é a cerva?

- 4 reais.

- Caro hein tia?

- E a menina que tu falou que tá aí...

- Afrodite! Desce aqui!

Um dos meninos cutuca os amigos e os três reparam na escada mais adiante de onde vem descendo uma crioula, imensa em pernas e tetas, maquiagem gasta, arrumando a calcinha como quem sai do banheiro.

- Boa noite.

- Os meninos queriam te conhecer.

- Não faço programa com três. No máximo dois e o outro pode ficar assistindo.

- Quanto que você cobra?

- 45 meia hora, 70 uma hora.

- Você beija na boca?

- Depende da higiene do cliente.

- Um cara como esse - um amigo brincando com o outro - beija?

- Até beijo.

- E aonde você atende... saindo daqui vai pra onde?

- Essa hora, hoje está vazio, pode ser aqui mesmo, tem um colchãozinho lá em cima.

- A gente pode olhar lá em cima?

- Vamos lá meus bens.

Os meninos vão seguindo a crioula, um pouco acuados, tentando ir o mais junto possível um do outro, que nem criança faz pra não se perder dos pais. Mas chegando ali, pertinho do primeiro degrau da escada, um dos meninos, se não me engano o acanhado que na entrada cumpriu interinamente o mandado de assanhado, repara numa portinhola se abrindo atrás de si, e volta-se.

É uma criança, de seis ou sete anos, que saindo de um cômodo e deparando com o menino, meio assustada e sem ação, lança uma resposta que nem teve pergunta ainda, foi mais coisa pra fugir do constrangimento de ser vista à queima roupa.

- O banheiro é ali.

Dito isso, voltou para de onde saiu. O menino não agüentou aquela cena, aquela imagem da menininha apontando o dedo. Continuou subindo com os amigos, mas seu peito estava acelerado, seu corpo abalado, tinha algo errado, muito. De repente o fedor dali piorou, o que se falava não fazia o menor sentido, as coxas flácidas da mulher não tinham mais importância, nem toda a vida que vinha levando, os ovos, os linchamentos, os escárnios, os trotes, as bebidas...

Desceu num solavanco, num gesto silencioso, mas que de tão direto e definido, vazava barulho e violência; os outros dois, assustados, fizeram do ato o desejo que tinham e desembestaram escada abaixo, a crioula ficou ali ainda, apagando luz, ajeitando tapete, arrumando sutiã. Só desceu quando ouviu a loira enrugada gritando, rouca e decadente.

- Filhos da puta!

- Que houve, mulher, que gritaria é essa?

- Esses moleques levaram a menina!

- Como é que é?

- Levaram sua filha, caralho!

Dentro do carro, os dois meninos atônitos, mudos, como num velório, enquanto o que havia trazido a pequena, chorava, chorava, numa crise alucinante, batia os dentes, mordia os lábios, perdia o ritmo da respiração e quase sufocava; quando já ia se acalmando era olhar pra menina e voltava tudo, rangia, gemia, gritava de pura indignação. E era a criança que consolava.

- Chora assim não, tio. Fica muito ridículo pra alguém do seu tamanho.

E o tio chorava ainda mais.

Já estava de manhã quando o carro parou de volta no casarão arruinado. Os três meninos perceberam um carro de polícia ali e sabiam que não era pra fechar o estabelecimento. Foram entrando como parentes distantes que já instalados semanas na casa alheia, entram e saem como bem querem, o tio por último de mãos dadas com a criança. Ali dentro, viram uns policiais e a crioula desconsolada, descabelada, desmantelada, fodida mesmo. Toda essa fragilidade virou animal em extinção assim que deu com os meninos. Acelerou até sua filha, puxando-a, esfregando-se, engasgando-a de tanto rever. E após um segundo de pausa reflexiva, partiu como um animal feroz, espancando, mordendo, odiando, enforcando, arranhando com suas poderosas unhas o pacato menino. Os policiais não se deram o trabalho de apartar a cena de selvageria, muito menos os amigos do amigo, não; foi preciso apenas uma voz doce impor-se sem elevar-se ao som da fera.

- Deixa ele, mamãe.

- Minha filha... isso aí não presta... só Deus sabe o que esse pervertido fez com você...

- Ele me levou pra praia. E a gente ficou contando estrelas. Mas toda hora a gente perdia a conta, tem muita estrela no céu, e brinquei de outra coisa. Construí castelo de areia, mas aí o vento tava forte e aí cansei de brincar. A gente foi pro parque e andou no balanço, e na gangorra, e no escorrega. Andei de carro na janela e tomei sacolé de uva. Eu queria outro, mas o dinheiro acabou. Eu xinguei e eles disse que porque xinguei não ia ter mais sacolé. Chorei, mas depois não chorei mais.

Nessa altura a fera já tinha voltado a ser mãe e mulher da vida, mas ainda ruminava uma raiva atrasada... que não se consulta com a razão. Os policiais perguntaram se tinham algo pra fazer ali e ela disse que não, obrigada, podem levar os pivetes. Não conseguiu olhar os meninos nos olhos, prometeu à filha muito sacolé de uva, e aqui a Afrodite deixa o conto.

Os meninos se despedem sem muito drama da pequena, sabem como são as crianças, não se apegam e já esquecem de sentir que vão ter saudade, acenam para a loira enrugada e, levados pelos homens da lei, deixam o casarão como parentes que depois de tumultuada temporada sobre teto alheio, partem sem olhar pra trás e até aliviados em finalmente serem postos da porta pra fora.