ALAE JACTA EST
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Sonia Regina Rocha Rodrigues
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Que a confusão foi grande, foi. Aos catorze anos defendemos nossos interesses com paixão e veemência. Sofrêramos uma injustiça e éramos o lado fraco. Do outro lado, a professora de matemática, radical em sua intransigência. A melhor aluna da classe pediu a palavra e enlouqueceu a professora: Se um só aluno reclama, é possível que o problema seja do aluno. Se todos reclamam, inclusive eu, as probabilidades falam a favor da incompetência do professor. Ora, o ponto estudado era justamente probabilidades e as regras do mundo eram claras: adultos tem 100% de razão, sempre. A professora socou a mesa, arroxeou e saiu bufando porta afora. No silêncio que se seguiu, podíamos quase palpar o som angustiado de nossos corações. A diretora entrou, fechou a porta, olhou cada rosto de frente, fazendo-nos baixar o olhar, e começou o sermão de praxe. No entanto, naquele dia em particular, nossa submissão chegara ao limite e a indignação ao máximo. No momento só percebemos a piada bem colocada. Bem quando a diretora invocava o nome do Altíssimo, rolou lá de trás um irreverente: Deus não joga dados! Rimos. Rimos com alegria, rimos como só adolescentes sabem rir. Rimos até às lágrimas. E ainda ríamos quando a catástrofe desabou: Suspensão coletiva. Peguem suas malas e voltem imediatamente para suas casas. Muito digna, a Reverendíssima Madre Superiora abriu a porta e saiu. Fez-se silêncio. Corriam os anos sessenta do século vinte. Estudávamos em colégio particular de disciplina rígida, onde advertência já era castigo sério que fazia tremerem os joelhos. Suspensão era o impensável. Saímos pequeninas, encolhidas ante o olhar indiferente da irmã porteira que passou a tranca após nossa saída. O sol de outubro ofuscava-nos. A rua nunca parecera tão hostil e sem graça. Alguém choramingou: Que vamos fazer agora? O lógico seria chorarmos de vergonha, mas, no dia em que o impensável aconteceu o diabo andava a soprar inusitadas idéias em nossos ouvidos. Já nem me lembro de quem partiu a sugestão: Vamos às Americanas tomar um lanche? Começamos
imediatamente a rir, a falar, a cantar, bando de pássaros em
arribação. Quem não tinha dinheiro pegou emprestado. Abaixo a tirania! A nós, burgueses! Sossegamos a apavorada funcionária da lanchonete pagando adiantado e rapidamente voltamos a ser meninas em manhã de primavera, a conversar de bailes, roupas, poesia, namorados e letras de músicas. Algumas de nós pela primeira vez saíam em público sem supervisão dos pais. Saboreávamos a liberdade. Na volta dispersamo-nos, cada uma tinha um destino diverso. Em grupos acenávamos adeuses. Restava-nos enfrentar os pais. Ora, enquanto tomávamos nosso lanche, a notícia correra de fone em fone: as meninas do São José estão soltas nas Americanas. Pessoas que nos reconheciam avisavam nossos pais. Ao meio-dia telefonemas, reclamações e recados choviam na secretaria da escola. A queixa indignada era uma só: como é que esta diretora irresponsável joga as meninas na rua sem mais esta nem aquela, sem nem mesmo avisar os pais? Ganhávamos, assim, aliados inesperados nas fileiras inimigas. Quando souberam o motivo da confusão os pais exigiram a imediata substituição da professora problema. A reunião de pais e mestres foi antecipada e concorridíssima. Para salvar as aparências, uma dispensa médica foi concedida à titular e uma substituta convocada às pressas apresentou-nos uma tal de matemática moderna desenhando na lousa círculos com os quais expunha, de maneira claríssima, a teoria dos conjuntos. Conquistou de imediato alunas e pais, que questionavam os livros e os métodos da mestra intolerante. Se nós desconfiávamos das certezas matemáticas, aprendemos naquele momento a ter fé na vida, pois obtivéramos justiça, contra todas as probabilidades. A melhor aluna ousou interpelar a diretora: Gostaria de saber porque a senhora mudou de idéia. Para espanto e júbilo da classe ouviu-se, murmurada a contragosto, a explicação: Quando toda a classe reclama, é mais provável que o errado seja o professor. |