APARTAMENTO 111
José Luís Nóbrega
 
 

Não gostava daquele morador, e ponto. Porteiro do prédio por mais de vinte anos, não lhe agradava a presença do novo morador. Não o agradava não por birra, ou por qualquer outro motivo fútil. O novo condômino, militar aposentado, não lhe agradava por viver dizendo aos quatro cantos que já mandara matar cento e onze, e que a maioria dos cento e onze eram de cor negra, prevalecente entre os detentos do antigo Carandiru. E o porteiro, negro, pai de uma jovem de dezenove anos que acabara de entrar para faculdade graças à cota para a raça negra, sentia-se ofendido pelas palavras do coronel reformado.

Na marmita não mais que o necessário para suportar oito horas de trabalho. Arroz, feijão, um ovo frito, chuchu cozido, garfo e uma velha faca enferrujada. Isso era o que a mulher levava todos os dias para o almoço do marido porteiro. O velho negro comia sua comidinha resignado, sem pensar no ontem ou no amanhã. E a cada fim de tarde, lá vinha o petulante novo morador, todo pomposo, a desfilar, a afirmar com um simples olhar para o negro porteiro de que negros são negros, e nada mais, ou, quando muito, presidiários em sua grande maioria. O porteiro, através daquele olhar, sentia-se diferente não por ser porteiro, mas sim, por pertencer a outra classe, a classe dos subalternos, a classe dos excluídos.

Até que um dia a comida foi deixada intacta na velha marmita. Mas por que a falta de fome? Havia algo no fundo daquilo tudo que não lhe agradava.Tinha uma fome - e porque não dizer? - uma sede de algo que não conseguia definir. E lá, no final da tarde, depois de visto e revisto o alimento no fundo da marmita, avistou o coronel que se aproximava com seu olhar a fitar a guarita com ar de superioridade. O negro porteiro baixou a cabeça, acariciando a velha faca enferrujada que a mulher deixara juntamente com a marmita repleta de arroz, feijão, um ovo frito e pedaços de chuchu cozido.

Dez minutos depois do olhar escravocrata do coronel, o velho porteiro sobe para o apartamento de número cento e onze. O desprezado porteiro não aperta a campainha. Abre a porta com a chave apanhada na administração do prédio. O coronel encontra-se sentado no sofá, tomando caipirinha, com apenas uma toalha a cobrir-lhe a cintura. O velho e negro porteiro entra no apartamento com a faca que a mulher trouxera juntamente com a marmita. Lembrou-se da comida. Sentiu uma fome inesperada para um momento como aquele. O coronel não esboça nenhuma reação, estando completamente embriagado. Aquele não parece ser o homem cruel, responsável pela morte de cento e onze presos. O porteiro avista um revólver sobre a estante. O coronel tenta se levantar para pegar a arma, não consegue nem mesmo tirar o corpo pesado do sofá. A mão do porteiro é mais ágil. Atira sem vacilo no abdômen do matador de cento e onze presidiários. O porteiro se retira, guardando no bolso a velha faca que não precisou ser usada, esquivando-se das câmeras de segurança do corredor.

No dia seguinte a amante do coronel vai ao apartamento cento e onze para visitá-lo, encontrando-o já sem vida. O porteiro afirma ser ela a última pessoa a visitar aquele apartamento. As câmeras comprovam isso. O delegado sustenta ser um típico crime passional, já que nada fora roubado, nem mesmo os cento e onze reais que o coronel possuía na carteira sobre a estante empoeirada. No almoço, depois que os policiais se retiraram, o velho negro porteiro come seu arroz, feijão e um ovo frito. Sente uma fome incontrolável. Corta o ovo com a mesma faca enferrujada que a mulher traz todos os dias, juntamente com a velha marmita. Enquanto come com sofreguidão, lembra-se do coronel esvaindo-se em sangue, um corpo muito branco, tendo apenas uma toalha negra enrolada na cintura...