MISTRAL
Eduardo Prearo
 
 
O rio de lágrimas de dentro de João Carolino está ressequido. O sofrimento não flui mais, tornando-o um ser com coração de pedra. Ele não compreende por que ultimamente está zumbindo demais, seja na fila de supermercados, quando imita gemidos de estrelas de filmes pornôs, seja em casa, quando abre a janela e canta, seja atravessando a rua, nos faróis, quando tem ataques de riso. A idade chega, mas não é uma intrusa ruim; enfim, graças a Deus chega. Há épocas em que ele se olha no espelho e se detesta: não vê um homem, mas um projeto abandonado de homem. Agora se lembra da tarde de domingo em que conheceu Mariah, em uma farmácia. Ela procurava um engov, ele um protetor solar. Acabaram se esbarrando, surtando, e por fim começando um longo papo. A mulher disse-lhe que tinha intenções de se matar, mas receava sobreviver na pós-tentativa. Ela estava bêbada. Hoje ela mora em França, mas João Carolino sempre lhe escreve longas cartas. São ambos os dois amigos que quase nunca se tocaram, mas mesmo assim sempre foram íntimos. Na mais recente carta que o jovem senhor escreveu à amiga, na semana passada, ele dizia:

Tenho esperado suas cartas com ansiedade. Neste intermúndio é-me difícil largar os maus hábitos. Vez ou outra pego-me petando, e não sei por que peto; talvez seja por ignorância ou então por malandragem. Saudades daquele tempo em que saíamos para eventos, enfrentando a fuinha herpética e tudo o mais em troca de um pouco de glamour. Não tenho mais saído para lugar nenhum. Vou por vezes ao Ibirapuera andar de bicicleta alugada. Tem agüentado bem o mistral? França é tão linda por fotos, obrigado por elas. Gostei daquela em que você está usando a imitação do colar de Maria Antonieta. Sou bijouteria também, porém uma vulgar. Você está mesmo lendo Proust?, não sei como suporta. E os amores, amiga, tem amado? Fale mais sobre Gilbert, ele te bate mesmo? Mas por que você deixa? Quero ficar sozinho para sempre, mas não miserável para sempre. As dívidas irão caducar daqui a três anos e aí não serei mais insolvente, desde que não surja um vendedor disposto a me ferrar de novo com seu 71 forte. Viva a nossa androginia, será ela a predominar no futuro, não dizem? Bom, agora tenho que ir, tenho um encontro marcado com um estrangeiro conhecido de um conhecido meu. Que vergonha de mim, dou vergonha? Irei meio porquinho.

João Carolino voltou do encontro com Brian, o conhecido de um conhecido dele meio que indiferente, talvez sabendo mais em que ponto se encontrava sua carência, sexualidade e sem-vergonhice. Acendeu uma pequena vela e percebeu novamente que não valia nada, que era mesmo um doente. Quis por um momento ser um bruxo, mas não sabia de nenhuma magia. Se ao menos fosse macho mesmo, afogaria o ganso com uma puta ali da esquina e pronto. Agora se encontra só; assiste a um filme de Almodóvar na tv, lembrando-se de que tomou vodka com o estrangeiro, bebida supercomum na Europa. Não presta, sente que não presta também para ter amigos homens, e nem pra nada. Pega um papel e uma caneta e escreve...

Cara Mariah. Está muito em voga aqui usar mochila com terno. Comprei uma na galeria do rock. Por mais que eu tente ser elegante não consigo. Quero ser o homem mais elegante do mundo. Os sapatos que quero estão caros, custam mais de duzentos reais. Bebi, após um vodka, pinga, juntamente com o estrangeiro, mas ele achou a bebida forte. Estou ouvinto Tasso, poem número dois, de Lizt. Brian quis ver mulheres, mas acabei levando-o a um bar gls, sem querer, é claro. Disse-lhe que dera de cara com Naomi em uma boate da Augusta e ele se entusiasmou; na certa nem na Europa eu teria tido essa oportunidade. Pensei também em beber aquele suco de comigo-ninguém-pode, lembra-se? Um maninelo, sempre me acho isso. Não aprendo, Mariah, não aprendo com as lições que a vida me dá. Estou meio gordo, mas dizem que com a idade...sim, com a idade isso fica difícil de reverter. Faço juz ao meu lado vira-lata, e ninguém quer saber de um vira-lata. Voltei a furtar por puro prazer. Se me pegarem irei pra cadeia e depois para um albergue. Brian quer o telefone de George, um homem que me despreza; dar-se-á bem com ele, na certa. Sinto que esta nação jamais elegeria alguém calvo para o poder. Estou com sono. Dê-me notícias de você e de Gilbert. Sinto tanto a sua falta! Doravante tentarei mais não entrar no turbilhão das paixões, serei mais forte do que ele, mais forte do que qualquer mau hábito. Os lírios não tecem e nem fiam. Ah, e agüente firme o mistral.

São cinco da manhã. O sol está para nascer. O sono não veio. Do apartamento ou do minarete, João Carolino vê tudo...vê as pessoas indo trabalhar, mas depois se lembra de que é domingo. Elas talvez estejam indo à missa ou a um culto. Descasca lentamente uma banana e percebe que está felicíssimo. Um dia talvez seja moderno. A solidão, enfim, é a sua felicidade, já que o mundo não pode ser como ele quer. Ainda bem.