TRAUMA NA ALFABETIZAÇÃO
Claudia Sanzone
 
 

Vovó viu a uva
Vovô viu a ave...

Quando eu entrei para a escola, na classe de alfabetização, era assim que começava a primeira lição. Eu não freqüentei o jardim de infância. Portanto, não tive contato com aquarelas, massinhas e outras lambuzadas pertinentes à referida série e que podem até ter lá sua função didática, mas servem bem à beça a propaganda de sabão em pó. Fui direto para a C.A., sigla com as iniciais de classe de alfabetização. Engraçado perceber que o hábito de abreviar nomes, como MPs, FHCs, CPIs e PFs, vem, pelo menos, desde a década de setenta. E pensar que naquela época “pê éfe” designava prato feito. Mas isso já é assunto pra outro dia.

Como eu ia dizendo, minha iniciação na escola se deu pelo contato direto e imediato com as letras. Na cartilha tudo era cheio de ilustração e aliteração pobre. Os acentos gráficos não recebiam nome, provavelmente pra não assustar as crianças incautas como eu, que não passaram pela fase de ouvir historinhas. O objetivo de primeira lição era familiarizar o pré-alfabetizado com o código da letra “v” associado a um som. Os acentos apareciam para mostrar os timbres das vogais aos leitores iniciantes. Então a gente aprendia que o acento agudo era o grampinho do cabelo da vovó, por isso tinha o formato compridinho e representava o som aberto. O circunflexo, cujo termo não era dito porque poderia espantar os alunos com seu nome feio, era o chapéu do vovô. Daí se explicava aquele formato de “v” invertido e a associação a um som fechado.

Até aí tudo bem. O problema residia na forma sofrível com que se ilustravam essas idéias. A vovó, coitada, sentada numa cadeira de balanço, usava uns óculos de vidro à prova de balas e que a deixavam com um par de olhos esbugalhados. A velhinha tinha uma boquinha murcha, como se o raio da dentadura tivesse criado raízes na gaveta. Portava, atrás da cabeça, um volumoso coque no formato de casa de cupim. E era nesse bendito coque escultural que estava fincado o grampo enorme representando o acento agudo, desproporcional para o tamanho da cabeça, mas um tanto coerente com o diabo do coque.

A situação do acento circunflexo era ainda mais ridícula. Puseram sobre a cabeça do infeliz do vovô, todo encarquilhado, de bengalas e postura encurvada, um chapelão do tipo “soldado-cabeça-de-papel”. O raio do chapéu encobria praticamente todo o rosto miúdo do “veio”, deixando-o igualzinho a um possível avô do Recruta Zero, numa versão de boné mais pontiagudo e triangular. Tenho pra mim que aquele chapéu, uma vez mais cônico, seria útil em provas de direção do DETRAN. Um horror! Da uva e da ave pouco me lembro. Certamente não fugiam muito do estilo esdrúxulo e caricato dos velhinhos.

Passado o trauma da primeira lição, vieram as seguintes. Eu me recordo que vimos todas as vogais e consoantes até o fim do ano letivo. Uma das últimas lições da cartilha nos apresentava a letra xis. Era nela que aprendíamos que exame, xadrez, anexo e vexame se escreviam com essa letra, porém tinham pronúncias diferentes. Só que a essa altura, dos dois, um: ou eu já estava acostumada à esquisitice das ilustrações ou os desenhistas haviam se aprimorado e caprichavam um pouco mais no final.

Tenho certeza de que hoje, depois de três décadas e outros valores culturais adiante, seria bem mais didático ilustrar vovós praticando tai chi chuan e vovôs malhando em aulas de hidroginástica. Convenhamos: era uma indignidade aquilo que faziam com os anciões nas cartilhas da época! Aliás, se me fosse concedida a chance de voltar no tempo e possuir algum poder de decisão aos quatro anos de idade, eu iria antes para o jardim de infância e ouviria bastantes histórias sobre lobo mau, madrasta cruel e bruxa má. Talvez, dessa forma, tirasse de letra a impressão traumática que aqueles desenhos da primeira cartilha me causariam no ano posterior. Se duvidar, vai ver que nem eram tão horrorosos assim...