ENSINANDO O CULTO AO PASTOR
Beto Muniz
 
 

Eu era menino quando papai foi ungido Pastor. Na igreja católica os sacerdotes são ordenados padres, na evangélica são ungidos pastores, em ambas os novatos são despachados para algum vilarejo longe das capitais, ou seja, por conta dessa unção papai saiu de São Paulo, metrópole, e foi evangelizar num fim de mundo... No início da década de setenta o Triângulo Mineiro-MG era sim, um fim de mundo.

A igreja e a casa onde fomos morar eram construídas com tábuas, no mesmo terreno. A congregação tinha pouco mais que uma dúzia de almas, três dúzias de crentes se contássemos as crianças obrigadas pelos pais a freqüentarem os cultos. A maioria era de agricultores, gente com poucos recursos, menos estudos e muita sabedoria. Homens e mulheres de fibra, corpo e caráter rijos. Eu gostava de observar os fiéis chegando para o culto dominical, que começava às 16:00 horas para facilitar o retorno para casa, porque não havia condução ou iluminação após anoitecer. Quem morava fora da vila, num sítio ou fazenda, vinha de charrete, cavalo ou bicicleta, um desfile de crentes mudos, purgando sob sol implacável para louvar um Deus sem nenhuma misericórdia. Entre eles um casal muito pobre e humilde, trabalhavam num sítio uns quatro quilômetros de distância da igreja. Recém convertidos à fé cristã todos os domingos vinham a pé cultuar conosco. Eram os únicos de fora da vila que vinham a pé, no entanto eram os primeiros a chegar, antes das 15:00 horas já apontavam na entrada da vila, o homem sempre à frente, dois passos adiante dela, ambos com roupas limpas e os pés empoeirados. Quando Deus se apiedava daquela gente, parecia que tudo ficava pior, chovia. Chovia muito! O casal chegava enxarcado, apesar dos respectivos guarda-chuvas, com barro nos pés. Ele com a calças levantadas até os joelhos não se desviava das poças. Sob sol ou chuva o mesmo ritual de lavar os pés e as sandálias no tanque antes de entrar na nossa casa, parada obrigatória para o cafézinho antes do louvor. No domingo em que o casal foi batizado segundo o costume cristão, após o culto, já fora da igreja, o homem comunicou ao pastor que desejava dar um testemunho. Meu pai respondeu que se Deus tinha operado uma benção em sua vida, ele devia mesmo dar graças, porém, deveria ter aproveitado o culto que acabara para testemunhar perante a igreja o ocorrido. Para nossa surpresa (vários fiéis estavam presentes), o irmão respondeu que não, não tinha recebido nenhuma benção e era por isso mesmo que ele estava com "uma vontadi danada" de que Deus fizesse alguma coisa para que ele pudesse testemunhar.

Com a paciência de Pastor iniciante disposto a salvar todas as almas do mundo, meu pai explicou que Deus também está nas pequenas coisas, nos detalhes do dia-a-dia, abençoando para que a gente não precise de Seus grandes feitos. O homem se conformou, por hora, mas em sua vida os dias continuaram passando sem que nada acontecesse para ser relatado como sendo uma benção. Ele firme, perseverando na fé e acumulando a vontade de contar uma obra de Deus perante a congregação. Após cada culto dominical ele vinha até nossa casa, sentava para o café obrigatório pós louvor, e antes de ir embora levando sua esposa no rastro, reclamava com meu pai:

- Ôxa irmão-pastô, tenhu tamanha vontadi di contá um tistimunho, mas num contece nadica di nada...

Certo domingo o casal estava a caminho da igreja quando o chinelo dele quebrou a tira. Eram daquelas sandálias que não deveriam arrebentar as tiras nem soltar cheiros, mas de tão velha acabara a garantia de fábrica. Ele ficou apreensivo diante da possibilidade de chegar descalço na igreja, porém logo encontrou uma solução inusitada: Pegou a alça elástica do sutiã de sua esposa e a amarrou nos três pontos da sandália, em substituição a tira quebrada.

Enquanto dava um jeito no seu chinelo o irmão começou a rir e disse:

- Taí muié, uma obra pra mode eu contá na igreja.

Na liturgia dos cultos evangélicos existe o tempo reservado para os fiéis contarem sobre graças recebidas. O pastor pergunta se algum dos fiéis quer dar o testemunho, o abençoado se apresenta, vai até o púlpito, e tem a palavra para narrar a benção recebida. Antes mesmo do pastor terminar o convite de praxe o irmão se levantou e começou:

- Agradeçu a Deus causqu'eu vinha pra igreja e minha chinela quebrou e intão pensei cumé que'u ia chegá na igreja. Aí sinti a presença di Deus mi orientano a marrá a arça du sutião da minha muié nu lugar da tira rebentada. Fiz isso i tô aqui cum a chinela nu pé pra honrá e grorificá u nomi du Nossu Sinhô Jesuis Cristu.

Apoiou a mão no púlpito, deixou o peso do corpo sobre a perna direita e apresentou seu pé esquerdo calçado pelo chinelo. Prova da benção. Alguns risos aqui, outro ali, abafados, e meu pai, cumpridor de sua missão perante Deus, achou por bem doutrinar e alertar o irmão. Postou-se ao lado dele e disse quase constrangido:

- Irmão, isso não é um testemunho...

Brio ferido pelos risos disfarçados ele rebateu de pronto, ameaçador, avançando sobre o pastor:

- Si issu num é tistimunho quidiabéisso intão?

Creio fielmente que Deus interveio para acalmar os ânimos. Mesmo recentemente, já pastor experiente, a única coisa que tirava papai da linha era alguém blasfemar dentro de sua igreja. Pecado Capital... No entanto, depois dessa "benção", o pastor nunca mais se meteu nos testemunhos alheios. Diante das bizarrices que foram se acumulando anos após anos, papai fechava os olhos, entrava em comunhão com Deus e eu podia apostar que ele repetia mentalmente a súplica do Cristo Crucificado no evangelho de Lucas 23:24: "Pai, perdoai-os, eles não sabem o que fazem". Algumas vezes eu percebia o canto de sua boca se levantando sutilmente, o vinco entre a boca e a bochecha se alterando, apenas um vislumbre de sorriso quando o caso ultrapassava a fronteira do simplório e invadia as bandas da comédia. E lembro cada uma dessas vezes, cada um dos casos...

(Série - Lendas da Evangelização)