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AULA
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André
Calazans
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- Bom dia a todos vocês. Meu nome é Edson Sabóia, e eu sou o professor responsável por ministrar a cadeira de Teoria Epistemológica Um aqui no Instituto de Ciências Humanas. Em primeiro lugar, eu gostaria de dizer que vocês não terão facilidades em relação a esta matéria. Particularmente, considero que mais da metade de vocês não deveria estar dentro desta sala de aula. Saem do segundo grau completamente despreparados: não sabem ler, não sabem escrever, não tem senso crítico. Enfim, não sabem pensar. Tenho plena consciência de que este é um problema generalizado em nosso país. Mas isto não justifica, apenas explica. Isto não é surpresa em uma nação onde os valores estão todos invertidos. (pausa). Com vinte e cinco anos de magistério, posso afirmar que, ao final de cada período, meu desejo seria reprovar noventa por cento da turma. Entretanto, por se tratar de uma instituição pública, existe uma portaria, feita por algum burocrata, proibindo-me de tomar tal atitude. Ela estabelece um limite de trinta por cento de reprovação. Por isto, saibam que eu sempre farei uso deste limite. Sempre. Como vocês são em número de quarenta, doze de vocês já podem se considerar reprovados. Resta apenas saber os nomes. (pausa) Outra coisa: exijo compostura. É o mínimo que vocês podem fazer, ainda que não compreendam a maior parte dos conceitos que serão emitidos. Se não conseguem alcançar determinados níveis, ao menos se esforcem para tanto. (pausa) Cabe lembrar também que não tolerarei entradas e saídas de sala fora dos horários previamente estabelecidos. Não me interessam os motivos: a vida pessoal ou profissional de vocês é daquela porta para fora. Aqui há hora para entrar, e hora para sair. Um ponto importante: jamais me interrompam. Toda vez que eu acabar de expor meu pensamento, vocês terão a oportunidade de perguntar. Mas esperem até que eu avise, para que isto aqui não se transforme numa balbúrdia. (pausa) Vamos falar também do nosso sistema de avaliações. Pelo regulamento da universidade, vocês terão três provas obrigatórias, sendo duas bimestrais e uma final. O cálculo é bastante simples: a média das bimestrais somada à final é dividida por dois. As questões serão, obviamente, discursivas. Exijo respostas de, no mínimo, trinta linhas para cada pergunta. E não tentem embromar escrevendo tolices, pois a questão será integralmente anulada. (pausa) Não preciso dizer que se alguém for pego ousando trapacear, olhando para a prova do colega, será colocado para fora da sala diretamente pra secretaria, além de levar um zero. Eventualmente, vocês terão testes-surpresa entre as avaliações. A norma me permite utilizar este recurso, que pode piorar ou melhorar a média de vocês. Quase sempre, piora. Bem, feitas as apresentações e explicitadas as regras, vamos dar início à aula em si. (pausa maior) Começaremos o período abordando um tema bastante importante no contexto da problemática da dominação, e que terá inúmeros desdobramentos empíricos na ossatura dos aparelhos ideológicos: a inversão da relação com o concreto. No seio do bloco histórico, estrutura e superestrutura mantêm uma interação orgânica e dialética, com a atomização das classes transcendendo o mero economicismo da matriz de um modo de produção específico. Os classicistas afirmavam ser este fenômeno um simples reflexo do econômico, mas uma visão contextualizada da filosofia da práxis nos leva a uma instância auto-reguladora e reprodutível. Daí se origina a ilusão do Estado-apêndice, visão metafísica que nada acrescenta ao debate orgânico latente no cerne da crítica materialista. (pausa) Até aqui, alguém tem alguma pergunta ? A turma fica em silêncio por algum tempo, sob o olhar perscrutador do mestre. Até que um rapaz se aventura: - Eu tenho, professor. - Qual o seu nome, rapaz ? - Beto. - Garanto que na sua certidão não consta o nome Beto. Seria Roberto, Alberto ? Talvez Adalberto ? - É Roberto, professor. - Fale. - Sabe o que é, professor, não é nada de muito importante, não... - Se você possui dúvidas, o momento é este. Posteriormente, não adianta se lamentar. Vamos, fale logo. - E se eu falar besteira ? - Veja bem, se você não tem maturidade e segurança suficientes, não deveria estar numa instituição de ensino superior. Já estou perdendo a paciência. - Tá bom, é o seguinte: já te mandaram pra aquele lugar hoje ? - Ma ... mas ... o ... o quê ? Como é que é ? Após um período inicial de espanto e incredulidade, a turma irrompe numa gargalhada longa e sonora, cortada de vez em quando por brados debochados de um ou outro aluno mais empolgado. O professor Sabóia nunca tinha sofrido tamanha agressão em toda a sua vida acadêmica, e talvez por isso não consegue articular uma reação imediata. Depois de um tempo digerindo a humilhação, ele contra-ataca: - Seu desclassificado, está pensando que isto aqui é sua casa, e você está falando com sua genitora ? Ponha-se daqui pra fora, e saiba que você será expulso em procedimento sumário ! Vamos, agora, seu verme ! - Eu vou embora mesmo, porque a sua aula é uma porcaria ! O rapaz pega a mochila e se levanta, enquanto os últimos risos se esvaem. O professor passa um lenço molhado na testa, procurando forças em sua alma para não perder o controle e prosseguir. A aula acaba cerca de uma hora depois. Emocionalmente abalado, o homem segue para casa. Não havia ninguém a sua espera, tampouco por chegar. Ele abre um volumoso livro. Tradução sua, do original alemão. Prossegue com as anotações numa caligrafia ríspida, para uma edição futura. Findo o trabalho, deita-se mas não consegue dormir de imediato. Um bom tempo depois, entrega-se ao cansaço, embalado pelos grandes pensadores. |
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