DEPLORÁVEL VÉU
Raymundo Silveira
 
 

Subitamente me vi nu, caminhando pelas ruas. A consciência da nudez também foi instantânea e o constrangimento, terrível. Contudo, a indiferença dos transeuntes e circunstantes era muito mais intolerável. Nada com que comparar. Um fantasma de alguém que ainda desconhece se já morreu, talvez fosse a idéia menos absurda. A primeira reação foi cobrir os genitais com as mãos e me encolher, com o ímpeto de quem se protege de uma ameaça fatal. Implorava angustiado para as pessoas me ocultarem amontoando-se em meu redor, mas ninguém prestava a menor atenção. Depois, permaneci de cócoras durante várias horas, sem me mexer, nem saber o que fazer. Enfim, a desesperação me levou a agir. Já estava tarde quando me levantei e caminhei entre as pessoas, as quais continuavam a me ignorar. A rua era uma extensa esteira escorregadia escorrendo sob os nossos pés, nos transportando. Não sentia falta do vestuário pelas razões factuais que levam a se precisar dele. Também não sentia frio, pois um sol só meu soprava seus raios sobre mim. Embora um vento frio escurecesse o meu caminho. No entanto, o constrangimento era cada vez maior. Experimentei um desejo louco de me vestir de embriaguez. Mas havia apenas aquela procissão de espectros. Sombrias assombrações sobrepondo-se ao meu sóbrio desassossego. Não percebia, mas pressentia estar sendo seguido. De repente, fui assolado por um sentimento penoso de inferioridade, indecência e indignidade. A vergonha que eu sentia dos outros, se amplificou ou e se modificou. E passou a me esmagar sob a forma de uma dolorida vergonha de mim próprio. Repulsa da minha nudez. Asco do meu corpo. E o constrangimento se transformou em medo, desamparo, amargura, tristura, e abandono. Nenhum indício de motivação, alento ou desejo... Uma nuvem escura confundia-me as idéias. Restava apenas um oceano vazio onde me afogava forçado por uma tempestade de desesperança. Ao escurecer, um vasto manto me encobriu da cabeça aos pés. Não via nada, nem era visto. Ou pelo menos assim acreditei. Passei a caminhar às cegas. Mas desapareceram os suplícios. Quando amanheceu, descobri que o manto, em verdade, era um véu. E então, todos me olhavam. Alguns riam, outros choravam. Não tinha a menor idéia do que acontecera. Continuei perambulando, ora nu, ora seminu. O mais estranho era que cuidava estar vestido quando, de fato, me encontrava recoberto apenas pelo tecido transparente da mantilha. E o sofrimento era cada vez maior. Num dia rígido cheguei a uma rija conclusão: o manto de desespero com o qual cuidava me abrigar, só me escondia de mim mesmo. Longe de me redimir, tal percepção levou a me “encobrir” cada vez com mais freqüência. E maior tormento estava de volta quando me via completamente nu outra vez. A angústia se tornou progressiva e causadora de náuseas físicas e emocionais continuadas. O jeito de encarar o tudo à minha volta era diferente. Quando despido, embora sem ser olhado sequer de soslaio, o semblante dos passantes me injuriava; sentia pavor de tudo e de todos; a nudez me transformava num réu em desespero pela culpa de um crime que ignorava ter cometido e sem sequer suspeitar qual teria sido. Devia a todos, não-sei-o-quê e tinha de pagar sem saber a quem, nem com o quê; uma escuridez de noite entrevecia os meus dias e uma claridez de dia encandeava as minhas noites; tudo o quanto deveria ser diáfano era opaco; a aparência das pessoas, invariavelmente monótona, em feitio de tédio; a ramagem das plantas tinha outra espécie de pigmento, pois a coloração ia do castanho escuro ao amarelo ocre, do verde-musgo ao verde-negro de bile da atrabílis; lutava para ouvir o badalar dos sete sinos da felicidade, e só escutava De Profundis. Então, tentava desesperadamente me proteger cada vez mais, para aliviar aquele inferno, ao menos por alguns instantes. Bastava me encobertar com o véu, para cuidar que o mundo teria avessado para todo mundo, e não somente para mim; eu era, sem ser, um potentado. E comecei, sem mais nem menos, a perceber clarinadas seguidas de sonatas mozartianas, tocatas e cantatas bachianas, cavalgatas wagnerianas e sambatas noelroseanas... Os odores também se modificavam. Qualquer cheiro sabia a natureza: aroma de terra amanhando, de fumaça de sândalo queimando, de mato verde florindo, de madressilvas se abrindo... um cheiro de nunca-termine. À própria dor moral, eu reagia com um grito que, tal qual o da tela famosa, parecia conter mais beleza que tragédia. Trágico teatro transfigurado transitoriamente em realidade. Mal erguia a fímbria do falso indumento, tudo ruía quais castelos de areia ao mar abeirados. Depois de muito padecer decidi andar sempre nu. Lutando para esconder a vergonha, mergulhado num riacho de palavras, sem me importar com a ordem, com a velocidade, nem com a braveza da corrente. As frases são águas rolando e indo despencar mais além em formato de cachoeira, cuja sonoridade não possui a grandiosidade das obras primas dos mestres da música. Todavia, é real. Enquanto isso, fluxos de idéias se movem lá embaixo, serpenteando sem rumo definido. E sem que eu pense por um só instante aonde irão afinal desaguar...