O SALTO
Maria Cláudia Gaiannes
 
 

As janelas e as portas fechadas, mas o sol insistindo em procurar as frestas, enquanto Júlia, ainda meio entorpecida pelo sono, sentia o calor aumentar. E o calor aumentava rapidamente no alto daquele pequeno apartamento no oitavo andar, meu Deus como ela odiava o calor! Até que, com os olhos já completamente abertos (olhos da cor da lama, da cor de um horizonte sem luz), Júlia não suportou mais ficar deitada e em um único movimento libertador tirou seu corpo da cama, corpo tão magro, tão pálido, que é difícil falar se as roupas que ela usava cobria-lhe os males ou apenas os acentuava.

Dia de folga no trabalho, feriado, que para alegria de muitos caiu numa sexta-feira, o sábado já estava emendado, mas a alegria de quase todos é o oposto da alegria dos poucos, dos poucos que não têm nada para fazer em um dia quente de feriado, que se deprimem por serem sozinhos, que preferem ocupar suas mentes com o trabalho. Júlia era uma dessas pessoas, não que ela não tivesse vida dentro si, sim havia muita vida dentro dela, além de muitas horas de amor enternecidas, mas estava tudo guardado, tudo embrulhadinho e colocado num cantinho do seu estômago, bem ao lado de sua gastrite.

Júlia então tomou um banho refrescante e decidiu sair, preparou-se para a guerra, sem saber que venceria e que ao vencer estaria perdendo tudo, a começar naquele dia. Colocou sua pior roupa, sem desconfiar que era a pior, pegou sua bolsa ultrapassada e foi passear no shopping. Viu vitrines, comeu bobagens, foi ao cinema, saiu do cinema e mudou sua vida ao tropeçar em Oscar, baixo, gordo, faltava-lhe um dente no canto e os outros eram totalmente desalinhados, e foram esses dentes que ele mostrou a Júlia quando abriu para ela um largo sorriso, que ela instintivamente retribuiu. Foi na verdade um momento incrível, dois anjos passavam pela Terra naquele minuto, dava pra sentir o vento trazido por suas asas. Júlia sentiu o frescor do vento e depois um fogo que devorava todos os seus pensamentos.

Oscar, por sua vez, possuía todas as taras, tomaram-se a primeira vez ainda no estacionamento do shopping, Julia conheceu alguém que jamais imaginara dentro de si mesma, e Osmar a devorava, devorava todas as Júlias que iam aparecendo e as que ainda estavam sendo criadas. Trancaram-se no apartamento dela sem lua ou sol, e as feiúras tão plenas não eram nada, o que havia era o suor e o sabor das bocas escancaradas, os dentes tortos eram fortes e mordiam, as pernas magras eram ágeis e subiam, desciam, tudo se encaixava.

Mas o tempo, que é senhor e com ele não se discuti, fez chegar a segunda-feira e os pobres mortais tiveram que se lembrar que eram pobres mortais e tinham que trabalhar, despediram-se às pressas entre beijos, jurando que o dia não demoraria a passar e logo estariam juntos, prometeram pensar "coisas" durante o dia que pudessem fazer depois durante a noite, um último beijo e foram cada um pro seu lado.

Para Júlia o dia não passou um instante, a eternidade teve que chegar ao fim para que ela pudesse voltar pra casa, mas ela voltou. Oscar já não podia saber, nem esperar, nem querer.

Júlia sentiu suas forças partirem quando o dia amanheceu e Oscar não veio, como não veio no dia seguinte e no seguinte e em todos os outros, e a cada dia uma daquelas Júlias descobertas, exploradas, afirmadas, iam também partindo, deixando uma alma desabitada. Ela até chegou a pensar que tudo tinha sido imaginação, loucura de sua mente, mas as sensações (e algumas marcas) estavam ainda em seu corpo, não podia negar.

Júlia caminhava com um lindo sapato para o seu trabalho no décimo primeiro dia após ter sido deixada, era assim que contava os dias agora, desde o primeiro. Quando num passar lento dos olhos por um mendigo que se esticava sobre um banco, Júlia teve a impressão de ver o rosto de Oscar estampado no jornal que o cobria, ela se aproximou, comprou o jornal do mendigo por dois reais, ele percebendo o interesse da moça fez jogo duro pra vender, mas uma nota de dois reais fez brilhar os seus olhos sujos e ele vendeu.

Sim, era a foto de Oscar, pequenina, em preto e branco, no canto de uma página onde se liam notícias policias, em baixo de sua foto a notícia mostrava uma vítima fatal de atropelamento, ocorrido no cruzamento da rua III com a Alameda São Francisco, uma quadra abaixo da casa de Júlia, às 7:45 de uma segunda-feira, quatro minutos depois deles se separarem.

Júlia voltou para casa, não conseguiu ir trabalhar, nem pensou em se justificar, olhava para a foto onde Oscar estava sério, tão sério quanto alguém que nos diz que não vai mais voltar, e os sentimentos nela se misturavam, pois ele não havia a abandonado por querer e isso era um alívio, mas havia a abandonado para sempre, e isso era terrível.

Ela passou o dia todo na varanda sob o sol que tanto odiava sem nem ao menos senti-lo, e talvez por isso ela tenha tido uma vertigem que a fez cair sem nem mesmo um grito.