UM UÍSQUE, OU UM BRILHANTE
Luís Valise
 
 

- Tira e advogado só prestam quando estão do teu lado.

Não lembro quem me disse isso, mas, pelos cascos do Belzebu, nenhum conselho poderia ser mais verdadeiro. Por mais que você se esforce em andar na linha, chega uma hora em que um dos dois aparece na tua frente trazendo más notícias. Quando a vaca foi embora, mandou que eu enfiasse no cu o que não pode carregar. Depois mudou de idéia, e um primo em primeiro grau do Quasímodo me entregou uma relação de “Bens Comuns a Serem Partilhados”, que incluía tudo: apartamento, carro, TV de plasma, mais o casal de caturritas, e a coleção do Ellery Queen Mistery Magazine.

Ao conhecer Tânia alguma coisa me dizia que aquilo não acabaria bem. Não sei se por estarmos de fogo; não sei se por tê-la pedido em casamento na mesma noite; ou por ela ter aceitado, a verdade é que no dia seguinte, além da ressaca, uma loira estava esparramada na minha cama, e eu fui trabalhar com seu cheiro em meu bigode. Ao voltar do trabalho, no início da noite, rezava para não encontrar ninguém, mas antes mesmo de abrir a porta senti o cheiro delicioso de bife acebolado. Como?

Foi o que perguntei durante a janta:

- Como você adivinhou que meu prato predileto é bife acebolado?

- Tua mãe me contou.

- Minha mãe? Você falou com minha mãe?

- Falei. Achei o telefone na agenda. Ela é um amor. Convidou-nos para o almoço de domingo.

Aquilo estava indo longe demais. A zinha estava desempregada, vivendo de favor em casa de amiga, e ninguém vira cozinheira de uma hora pra outra. Depois da janta eu pediria desculpas pelo porre de ontem, mas já tinha compromisso para o domingo. Na próxima semana eu telefonaria. Isso. A culpa fora da bebida. Não deixei que ela levasse meu prato para a cozinha, eu mesmo levei, assim como os copos e a garrafa de vinho pela metade. Ao voltar para a sala, ela me pôs um cigarro aceso nos lábios. Depois falou baixinho que eu era um amante sensacional, e que sóbria ela também seria melhor. Pensando bem, achei que o fora podia esperar até o outro dia.

No domingo, Tânia e minha mãe deram-se às mil maravilhas, com direito a álbum de fotos da família. No caminho de volta, Tânia pôs a mão na minha perna:

- Você era um bebê tão fofinho...

O advogado esperava que eu terminasse de ler a tal relação de “Bens Comuns”. Demorei de propósito, buscando alguma idéia para a situação inesperada. Olhei a cara magra, de faces encovadas, olhos perigosos atrás de óculos de armação de ouro:

- O Sr. sabe que tudo isso eu já possuía quando conheci Dona Tânia?

- Hum-hum.

- E mesmo assim ela acha que tem direito à metade?

- Hum-hum.

Eu precisava manter a calma. O cara era profissional, e eu um idiota que piorava depois de alguns uísques.

- Preciso consultar meu advogado.

- Faça como achar melhor. Aguardo sua ligação dentro de três dias.

No terceiro dia tomei uma providência: depois do trabalho fui ao Bar S.Cristóvão, protetor dos motoristas (bêbados), como dizia o slogan. O Nicanor ainda trabalhava lá. Quando eu sentei no tamborete e pedi um uísque, ele nem se mexeu. Ficou me olhando um tempão, e depois falou com sua voz de fagote:

- Orra, meu, você engordou pra caralho!

Era verdade, a vaca tinha me feito engordar doze quilos. De oitenta para noventa e dois. Como eu continuava com um metro e setenta e cinco, o resultado tinha sido um desastre. Sinceridade à parte, o Nicanor ainda lembrava minha marca preferida, e caprichou na dose. Quis saber como eu andava, por que tinha sumido, essas coisas. Pra isso garçom serve, pra ouvir merda, então eu desfiei meu rosário, e depois da terceira dose ele deu o veredicto:

- Pilantra. Essa mina, desculpe a franqueza, é pilantra. Merece nada. Porra nenhuma.

- Você não viu a cara do advogado dela, Nicanor. Peter Lorre. Boris Karloff. Vincent Price!

- Quem?

- Deixa pra lá. Garimpeiro de ouro em boca de defunto. Entendeu?

- E você ficou com medo da cara dele?

- Não é medo. O cara deve assustar até juiz. Já perdi a causa. Ela vai levar as caturritas.

- Eu conheço alguém que pode te ajudar.

- Quem?

- Um amigo meu. Tira. Aceita bicos de horror: cobranças impossíveis, essas coisas. E recebe.

- E ele é feio?

- Pior: ele é mau. Quer que eu fale com ele?

E o quê eu podia fazer? Dividir o apê? O carro? A coleção de Ellery Queen? Nem fodendo. E quando conheci o Heitor, achei que o Nicanor tinha exagerado: um cara comum, calça e camisa branca, podia ser confundido com um enfermeiro de hospital público, não fosse o sapato de duas cores. Tinha pele clara, cabelo e barba alourados, e você só percebia que era tira pelo olhar, azeitona com caroço.

- Conta tudo.

Eu contei desde o começo: uma tremenda loira, eu sozinho no mundo, se juntou com minha mãe, deu no que deu: quatro anos de “meu amorzinho”, dois de “traste imprestável”, e agora ela vinha com essa: metade de tudo, mais as caturritas. Ele fumou nove cigarros em duas horas, e tomou três conhaques com suco de limão.

- Dá o endereço dela, e o do advogado. Dei, com uma recomendação:

- Sem sangue, Heitor. Sem sangue. Me olhou com desprezo. Caroço por fora da azeitona.

Depois de três semanas sem notícias, me bateu uma agonia. Liguei pro advogado. A voz agora parecia afetuosa:

- Não estou mais cuidando do caso, o senhor faça como bem entender. Um arrepio me fez ligar para Tânia:

- Não me ligue mais. Pra você, estou morta.

Eu tinha que comemorar, precisava comemorar! Gelo no copo, dose dupla, sentei na poltrona: tudo meu. As caturritas me olhavam, quietas na gaiola. Troquei a água e renovei a ração. Nunca soube qual era o macho, qual era a fêmea. Talvez pingando uma gota de uísque na água... jogando um brilhante na ração...

Toca o telefone, era o Nicanor:

- O Heitor mandou um recado: quer te ver hoje sem falta. Vai passar por aqui lá pelas sete. Pra você ficar esperando.

Quando eu ia reclamar, o Nicanor desligou. Isso lá é jeito de dar recado? Isso é recado que se mande? Eu não tinha o telefone do Heitor, senão eu ligava dando bronca. Que porra é essa? Bom. Sete da noite.

Nicanor derramou uísque sobre o gelo:

- E aí, tudo certo?

- Certíssimo, Nicanor, certíssimo!

- O cara é fera, ou não é?

- Feríssima, Nicanor, feríssima!

De repente me veio à mente um detalhe: não tínhamos combinado honorário. Ou propina. Como pagar o Heitor? “Xis” por cento sobre o total em questão? Dois? Cinco? Dez? Não me dei conta quando ele chegou. Nem desceu da viatura, falou lá de dentro: - Entra!

Nunca tinha entrado em carro de polícia. Tem um cheiro estranho, cigarro misturado com suor, ou sangue, sei lá. O carro começou a rodar por ruas que eu não conhecia, e quando dei pela coisa estávamos pegando uma estrada. Ia perguntar que porra era aquilo, mas o Heitor me abraçou. Assim, fraterno. Falou com voz mansa:

- Quer saber? Eu acho que você devia colaborar com a Dona Tânia. Afinal ela cuidou de você durante seis anos, largou emprego...

- Largou emprego? Que emprego? Ela não trabalhava, era vida mansa...

- Toda separação traz obrigações por parte do homem, é ou não é?

- Mas quem foi embora foi ela, Heitor. Abandono de lar. É o que reza o Direito! Ele apertou o braço em torno do meu pescoço:

- Seja mais compreensivo, nem sempre o Direito está certo. E a razão, às vezes, percorre caminhos estranhos...

Chegou ainda mais perto, a barba quase colada ao meu rosto. Sua voz parecia vir do duodeno:

- Dona Tânia tirou o caso do advogado. Pediu que eu cuidasse do assunto pra ela. Eu aceitei. Não me leve a mal: ela está sozinha no mundo... Você entende? E você não me deve nada. É na faixa. Entende?

Senti um cheiro conhecido, agridoce, um cheiro róseo, um pouco excitante, um cheiro de ... Tânia! Uns perdigotos borrifaram meu rosto. Meu braço roçou seu último argumento, acho que calibre 45.

Quê que eu podia fazer? Entendi, mas com uma ressalva, para não parecer pusilânime: uma caturrita ficou pra mim.