MANHÃ DE SÁBADO (QUASE EM FRENTE AO HOLIDAY)
Creso Abreu
 
 

Feliz, intensamente feliz, como um bebê amamentado e gorducho.

O telefone calava, surpreendentemente cúmplice daquela justa pasmaceira, não um Hércules com doze trabalhos findos, mas doze vezes doze. A página era a esportiva, os comentários eram de que um clássico não teria favorito, os repórteres diziam que o preço dos ingressos aumentara, num claro desrespeito ao já tão sofrido e massacrado trabalhador pernambucano. Eu iria, sim, eu iria para a Ilha do Retiro, um jogo decisivo para as pretensões rubronegras, a torcida não podia abandonar o time àquela hora. A página seguinte trazia a esperança, a santa esperança de Tancredo, São Tancredo que iria redimir o Brasil de seus seculares pecados e livrar a nação de ser malufada. As folhas matutinas são belas e bem escritas aos sábados, mas exclusivamente aos sábados. Deve ser um segredo dos jornais, mas imagino um time de Machados, Eças e Augustos dos Anjos escrevendo os jornais inteiros dos sábados, afobados na noite de sexta. Á minha frente, uma estante barata de pinho escancarava "1984", que ganhara recentemente e ainda não havia lido – e naquele momento, não havia como comparar George Orwell com a prosa escorreita de Lula Carlos, a falar mal (com dor de cotovelo) do seu Náutico. Fiquei com Lula Carlos, e o Grande Irmão teve que esperar cinco angustiantes anos para o término da minha leitura e de minha ilusão com o comunismo. Romper com uma antiga ilusão somente é menos doloroso que aceitar uma nova e humilhante verdade, aprendi a duras penas, porém muito depois.

Sim, eu estava cansado, mas feliz. Sobretudo, o plantão da noite anterior - nenhum paciente falecera na UTI. O colega que me substituíra às sete da manhã encontrou os seis leitos preenchidos. Direto para casa, banho e café da manhã, jornal e sensação de dever cumprido, que mais um homem pode querer? Ali, naquela sala escondida do Sol, a vizinhança numa trégua silenciosa e o Grande Irmão a espreitar-me da estante de pinho, uma sensação de imortalidade era inevitável. Minha sala era o Olimpo, eu era Zeus, eu tinha grandes barbas brancas. E o cachorro. Sempre que me invadia essa sensação de imortalidade, vinha também aquela vontade irreprimível de ter um cachorro. Um doce cãozinho, daqueles que trazem o jornal na boca, será que existiam mesmo, onde é que eu tinha visto um? Mas aí tinha que comprar o cachimbo também, onde já se viu cachorro entregando jornal para o dono sem que este tenha um cachimbo a lhe baforar inteligência nas idéias? O síndico do edifício era mulher, mulheres e síndicos usualmente não combinam com cachorro, mas depois que o cãozinho já fosse da nossa afeição, ah, aí ninguém se atreveria a mexer numa pulga dele, o bichinho passava a ser quase um parente...

- Estou precisando de um "mói" de coentro.

A frase foi contundente, clássica, insofismável. Não havia dúvidas, precisava-se de coentro, mais especificamente, de uma determinada unidade de coentro que, pasmem, mesmo alquebrado intelectualmente pelos insanos esforços do plantão da noite anterior, imediatamente compreendi que “mói” se tratava de uma corruptela de "molho", no sentido de feixe, uma forma de aferir a quantidade necessária - mas não seria melhor dizer de forma correta? Não, senhores, nem pensar. Não vislumbrastes, no tom seco e árido da expressão, um como quê de sarcástica crítica? Não visualisastes, nas entrelinhas da frase, sua verdadeira forma e conteúdo? Se ali estivésseis, como eu estava, a olhar subjugado para aquela mulher grávida com luvas de borracha, compreenderíeis o terrível sentido daquela curta estocada, e nem por um mísero décimo de segundo pensaríeis em corrigir seu vernáculo. A versão definitiva daquela frase destruidora era, na melhor das hipóteses: "Levanta daí e faz alguma coisa para ajudar no almoço, você não cai na realidade nunca". Passei subitamente de Zeus a Cristo, ainda a sofrer o duro golpe, e da porta da cozinha veio o derradeiro e inclemente desígnio:

- Vai, e compra na quitanda na frente do Holiday.

Não senhores, ela deu-me as costas e voltou à cozinha, não esperou por nenhuma resposta, nem mesmo considerou a possibilidade de qualquer resposta, isto sim, foi o mais humilhante. Teria sido assim, sem dúvida, que Pilatos tratara Cristo, com aquela indiferença brutal, a certeza do completo jugo sob o dominado. Dois mil anos de religião não admitem a derrota de Cristo, eu nunca admiti, sou um ufanista das Escrituras, naquele tempo eu já lamentava Cristo não ter dado uma boa resposta a Pilatos sobre o que era a Verdade. Pois bem, Cristo diria a Pilatos o que era a Verdade, e a História acabaria, todos poderiam ir para suas casas, pensar em amenidades, e de quanta chateação escrita e falada não seríamos poupados em dois mil anos de pedantismo filosófico. Às vezes penso que Cristo não respondeu para evitar isto mesmo, o fim da História, que hoje dizem ter acabado com a queda do socialismo, mas creiam-me, se Cristo tivesse respondido a Pilatos o que era a Verdade, haveria menos chatos a nos cacetear com suas maçantes teorias - embora saibamos que a verdadeira essência da chatice é justamente dizer o óbvio de forma diferente e com ares de originalidade, e assim é possível que surgisse o Chato da Verdade de Cristo.
Era assim que eu divagava e sofria, ao Sol das dez horas de um sábado no Recife, em busca da maldita hortaliça, uma via-crucis de um condenado com a cruz de uma noite mal-dormidíssima às costas e uma coroa de espinhosos problemas financeiros que estavam ainda esquecidos até então. E a Verdade, Cristo Jesus, eu não entendia, por que não respondestes a Pilatos o que era a Verdade?
Eu era uma grande ameba deslocando lentamente meus pseudópodos, era um camelo de Lawrence da Arábia a ruminar pensamentos disformes a quarenta graus. Todos os pacientes do plantão me vieram subitamente à cabeça, lembrava-me de coisas importantíssimas que deveria ter dito ao outro plantonista, e assim já quase completamente transfigurado de Dr. Jekyll para Mr. Hyde, cheguei à tal quitanda próxima ao edifício Holiday.

Uma imediata antipatia pela barraca de madeira e suas horrendas hortaliças dominou completamente todo o meu ser. Tanto mais que fui menino forçado a comer verduras, tinha que comer cachorro-quente com tomate e cebola e pimentão e tudo nas festas de aniversário. A infância é a melhor fase de nossas vidas.

Refreando civilizadamente numerosos impulsos mal-humorados, resolvi acabar de vez com minha pequena desventura e comprar logo a hortaliça.

- Dá p'ro sinhô me arrumar um pé de coentro, por favor?

Sim, eu sabia ser distraído, na infância fui alvo de troças por ser o desligado na escola e na família, perdi milhares de guarda-chuvas, fui à escola quando não havia aula, tomei ônibus errado, esqueci compromissos impossíveis de esquecer, recados recomendadíssimos... Vivia no mundo da Lua, e conforme minha mãe me dizia, era um menino que um dia ainda deixaria minha cabeça em algum lugar. (Acabei deixando mesmo, mas convenhamos que isto sim, é uma outra história.) Mas não me escapou o impacto causado por aquele singular pedido naquela singular casa de negócios em frente ao edifício Holiday. O proprietário, um cavalheiro com uma barriga inimiga de camisas de qualquer tamanho, olhou-me de modo estranho, aproximou-se:

- O senhor quer o quê mesmo?

- Um pé de coentro. Um pé de coentro, por favor. Eu quase sussurrei...

Pai e filho se entreolharam, sim, pois havia um filho, uma réplica do seu balofo pai, a mesma camisa desabotoada e o mesmo umbigo gordo à mostra, dois paquidermes de facão na mão, cercados de frutas, hortaliças e não sei mais o quê, dois monstruosos seres que eu já detestava profundamente, e que agora me olhavam como se eu fosse um leproso caquético, a lhes infectar o ambiente. Odiei-os, sim, odiei-os bastante, e também profundamente odiei as duas donas-de-casa que não tinham mais o que fazer, e também estavam me fitando. Olhando o quê, eu não sabia, pois nada diziam, não riam, não choravam, não se ferravam, nem se estrepavam. Trinta segundos de humilhante silêncio, quatro pares de olhos a fulminar um pobre médico plantonista, que passara a noite em claro, um homem cheio de sono sobressaltado e de pensamentos absolutamente inúteis naquele momento.

- Onde é que eu posso pegar meu pé de coentro, por favor?

A quitanda era um campo de concentração. E eu estava à frente de dois SS, e com a mais refinada capacidade de fazer sofrer psicologicamente.

- O senhor pode pegar aí. Pode pegar aí em cima do balcão.

Eram nazistas. Aquela capacidade de humilhar, de mostrar ao oponente subjugado sua inoperância e sua irrelevância. Tinham a mais completa certeza de que eu jamais acertaria o que vinha a ser a categoria "coentro" dentre todas aquelas plantinhas verdes detestáveis, espalhadas por sobre o balcão. Detectei um sorriso irônico do filho nazista. Mas se enganavam. Fui ao balcão e escolhi dois talinhos de uma plantinha verde qualquer, e a plantinha era coentro - vitória final dos povos cristãos! Dois talinhos de coentro, dois símbolos diminutos mas significativos da vitória da Humanidade. Apresentei os troféus àqueles execráveis representantes da demonização do homem na Terra, os nazistas.

- O senhor poderia embrulhar? Embrulhe, por favor.

A situação se tornou definitivamente intolerável. Os dois torturadores fizeram uma pausa e se entreolharam por alguns instantes, sem dizer palavra. Eu me senti igual a um legume. Por fim, o mais velho ordenou ao mais jovem que embrulhasse os pezinhos de coentro. E então, aquela voz interior (sábia?) me cochichou que alguma coisa podia estar errada e que era melhor pegar o tal coentro e dar o fora, e cair fora rapidamente. Se eles estavam a mangar comigo, eu era civilizado, quase um pai de família, e não ia morrer estupidamente numa manhã de sábado que se iniciara tão bela e poética. Eles eram brutos, e os brutos que ficassem como brutos.

- Quanto devo ao senhor?

- Nada não. Pode levar.

Nada me cobravam! Como eu fora injusto! Claro, eles já me conheciam de todos os dias, de quando eu descia do ônibus, roupa branca de médico, cansado das batalhas nem sempre glórias, eu era para eles um sacerdote, um santo cura que descia do ônibus para tocar o chão próximo ao trabalho deles. Como fiquei envergonhado da minha ingratidão! Agradeci quase às lágrimas, sou um sentimental quando se trata destas coisas, e fui p'ra casa justificado. Ganhara a manhã afinal, e também o dia. Já sabia o que era a Verdade. Sim, Cristo, se querias saber o que era a Verdade, o momento e a pessoa eram aqueles. Perguntarias, eu criticaria educadamente aquele Teu imperdoável silêncio diante de Pilatos e Te diria, para o Teu governo, o que era realmente a Verdade. A Verdade, Cristo, era a gratidão de dois homens do povo a um reto cidadão que trabalhava duro e ganhava pouco, mas era reconhecido pelos simples. Minha mulher poderia ficar orgulhosa destas coisas, afinal de contas.

- Cadê o coentro? Você sempre demora.

- O coentro? Está em cima do balcão da cozinha. E tu não sabes de nada, os homens lá, sei não, acho que me conhecem, acho que me vêem passar de branco vindo do hospital, pois é, não me cobraram nada. O dinheiro que levei tá junto do pacote, eu nem usei.

Foi à cozinha e voltou rápido.

- Você está é louco. Eu pedi p'ra comprar um "mói" de coentro, e você me vem com dois pés de coentro, pra que diabos eu quero dois talinhos de coentro deste tamanho? Ninguém compra “pés” de coentro. E você ainda mandou embrulhar isto? Acho que o dono da quitanda já entendeu que você está é pinel mesmo. É claro que ninguém vai cobrar por dois pés de coentro, como é que você pode ser tão demente?

- o -

Por vergonha, planejei imediatamente nunca mais passar em frente aos dois quitandeiros. Tempos depois, porém, voltei a comprar lá, distraidamente, uma ou duas vezes. Penso que eles tinham esquecido o médico biruta - ou educadamente assim tentaram demonstrar. Do ocorrido, ficou-me uma profunda ojeriza à corruptela “mói”, a compras em quitandas, feiras, barracas, supermercados ou coisa que o valha, e também, não sei bem porquê, à idéia fixa de que a descoberta da Verdade é o final da História. No sábado seguinte, larguei o jornal, que injustamente passara a leitura de imenso tédio e bovinice, e iniciei "1984". Guerra é Paz, Liberdade é Escravidão, Ignorância é Força. O Grande Irmão serviu de bálsamo para a morte de Tancredo, naqueles tempos felizes em que buscar a Verdade era mais importante que qualquer outra coisa.