A NOTÍCIA DE UM ROUBO
Claudio Alecrim Costa

Quando Horácio colocou com o cuidado habitual o paletó em sua cadeira na repartição, não lhe passava pela cabeça o que aconteceria mais tarde.

Respeitado funcionário, com muitos anos de serviços prestados, Horácio repetia o ritual toda manhã, depois de cumprimentar os colegas com o bom humor costumeiro e os modos de um fidalgo, sentava-se à mesa, que parecia organizada por uma mulher prendada, respirava fundo e se embrenhava entre os ofícios.

Comum em ambientes de trabalho, onde a vida materializa-se em arquivos, computadores, grampeadores e toda sorte de objetos que passam a nos cercar mais do que nossa própria família e amigos de infância, a figura severa e temida do chefe nos assombra como fantasmas empertigados. Embora Aristeu não fosse propriamente a imagem da besta, tinha o cenho frio como o mármore e olhos que rastreavam a tudo. Aproximou-se de Horácio e lhe falou em tom impessoal:

- Como vai o trabalho, Horácio?

- Está tudo certo. Presto contas dos processos logo, logo...

- Muito bem...Sabe que tenho o senhor como um exemplar funcionário...Não me decepcione!

- De jeito nenhum! Não perdes por esperar...Entrego tudo com capricho antes do almoço.

Com um tapinha nas costas despediu-se Aristeu, foi para sua sala enquanto um burburinho encheu o espaço e só parou quando Horácio olhou à sua volta por cima dos óculos de lentes grossas. Era comum o frenesi dos funcionários depois que o chefe saía da grande sala para o seu buraco.

Os sapatos de salto alto, que batiam sincronizados no chão vítreo, eram de Vilma, responsável pela contabilidade da firma e dona de sinuosas curvas que atraíam os olhares ávidos dos homens.

- Seu Horácio, aqui está o adiantamento que solicitou. Foi deferido pelo doutor Aristeu nas primeiras horas do dia...

- Ele esteve aqui e nem me falou...Certamente está ocupado demais...

Pegou as notas novas em folha e colocou no bolso do paletó, agradeceu a portadora, não sem antes conferir o corpo esguio da mulher com olhar oblíquo.

À noite, chegou aos pulos, sem poder conter a felicidade e as palavras que enchiam sua boca, e contou para sua mulher a boa nova. Fazia tempo que economizavam para uma viagem e o adiantamento completava a quantia necessária.

A felicidade, tal qual a infelicidade, revezam-se tragicamente sem que se possa interferir. Quando Horácio enfiou a mão no bolso do paletó sua expressão congelou-se e o coração fez uma pausa que pareceu eterna. dona Rosa, mulher especial, cuja sensibilidade atravessava fronteiras e encontrava-se com o desconhecido e mágico mundo de poderes que escolhem habitar raras almas, adivinhou:

- Roubaram-lhe o dinheiro, Horácio?

- Não está mais aqui...Só pode ter sido roubado!

Caiu no sofá, com a mão cobrindo o rosto, e chorou. Zelosa e compreensiva, abraçou o marido e tentou o consolo em vão...

- Vou rezar...Seremos compensados de algum modo...Não fique assim, meu amor.

No dia seguinte, Horácio não tinha a disposição de sempre, levada junto com o dinheiro pelo suposto ladrão. Pois a questão não era material. O casal sonhou por vários anos com aquele dia e, de um momento para o outro, por obra de um vigarista, tudo se acabara. Não era o fim, mas todo o orçamento deveria ser revisto e o projeto adiado sabe-se lá por quanto tempo mais.

- Horácio, tenho que fazer uma revelação...

- Sei que está decepcionada comigo...

- Eu tive um sonho depois de rezar por horas pedindo que justiça fosse feita...

- Sonhou que estávamos viajando...Ao menos em sonho!

- Vi no meu sonho o ladrão que lhe roubava...

- Como assim? – Perguntou entre assustado e incrédulo.

- Foi Aristeu, seu chefe!

- Não diga bobagem! Foi a ele que pedi o adiantamento...

- Não costumo errar, você sabe...

- O que sugere? Pede-me que o acuse por ser flagrado num sonho?

- Faça como achar melhor...Mas não desacredite do que falo.

Quando Horácio entrou na repartição tinha o olhar baixo e o corpo curvado, além da expressão triste, que não lhe era comum.

Antes de colocar o paletó na cadeira como rezava o ritual, voltou-se e seguiu direto para a sala do chefe. Este o recebeu com espanto e levantou-se assustado.

- Algum problema, seu Horácio?

- Não se faça de fingido...

- Do que está falando?

- Do dinheiro...

- Não recebeu o adiantamento? Espere que vou ligar para dona Vilma...Acalme-se, homem!

- Eu não vi, mas uma pessoa daqui disse ter visto você pegar o dinheiro de meu paletó...

O destino certamente não está escrito como acreditam alguns, pois um sonho, algo improvável, fantasioso, subvertia a seqüência das horas e virava de cabeça para baixo o tempo e contrariava o plano engenhoso de tão improvável crime.

- Eu lhe rogo que não me denuncie! Tenho filhos e estou falido...O jogo, como roedores imundos, acabou com todas as minhas finanças – Desesperado, suplicou o antes imponente Aristeu.

O adiantamento fora tão prontamente atendido para que Aristeu pudesse se beneficiar como uma ave de rapina e resolver o problema que lhe tirava o sono. Por ironia, os papéis se inverteram e Horácio, bom homem que era, lhe perdoou o ato e fez do valor resgatado um empréstimo com contrato, que não só resolveu o problema de ambos mas, também, fez com que o chefe não passasse um só dia sem lhe fazer festa como ninguém jamais vira na repartição.

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