ARROZ SEM FEIJÃO
Beto Muniz
 
 

- Trinta e sete reais e quarenta centavos. Isso já paga tudo que te devo né?

- Endoideceu homi? Ainda tem troco. Tira aí dos cinqüenta e vê quanto você ainda me deve!

- Você quer ver o meu oco! - ele resmunga sabendo que ela tem razão.

- Tô fazendo é muito por você! O aniversário é do teu filho e eu nem devia descontar da pensão.

- Ajeita tudo nesses sacos e vamos embora.

Zé Comum e Maria Normal separaram e ela ficou com Mariazinha e Zé Filho para criar. Zé foi morar do outro lado da cidade, ele bebe além da conta, mas é bom pai e paga cinqüenta reais de pensão todos os meses. Maria se vira do jeito que pode, lava roupas, passa, faz faxina em escritório, casa, qualquer coisa que ajude a sobreviver. O filho está de aniversário e o pai veio ajudar cantar parabéns. Pela conversa dela fico sabendo que vão convidar os filhos da Rosa, prima do Zé, os meninos da Zéfina, irmã da Maria, e um ou outro moleque que estiver por perto na hora do parabéns. Já estão de saída, Zé e Maria, vieram comprar farinha, ovo e leite para o bolo; um pote de doce de leite para rechear; leite condensado e Toddy para fazer brigadeiro; cinco refrigerantes. Aproveitaram e estão levando pão, café e seis latinhas de cerveja. São boa gente. Conheço os dois desde que namoravam, dou um pacote de bexigas para enfeitar o barraco.

Ele pergunta se pode abrir uma cerveja e leva um xingo acompanhado da informação - nova para mim, que cerveja quente faz a gente mijar. Zé não diz mais nada, assunto encerrado, e enquanto arruma tudo nas sacolas plásticas, na distração, encoxa Maria.

- Homi, não encosta que estou pegando fogo!

- Vixi! Arrumou outro traste ainda não?

- Eu sou mulher de arrumar um traste seguido do outro assim? Me Respeite!

- Tá ilesa faz quanto tempo Maria?

- Desde que você foi embora ué!

Eu sei que Maria está mentindo. Anda se pegando com o Oreste, marido da Zuleide, tudo escondido, mas aqui detrás desse balcão fico prestando atenção no bairro, mais por falta de trabalho que por interesse na vida alheia. Inclusive o amante andou pagando uns atrasados da Maria aqui na venda. Só pacote de arroz ela devia três. Não me meto na vida de ninguém e finjo que não sei de nada. Zé já está nitidamente encoxando a mãe dos seus filhos. Cara de pinguço que viu cachaça.

- Oito meses só pensando besteira é? Vamos resolver isso...

Eu finjo não estar presente, os dois continuam ensacando produtos em ritmo de acasalamento, finalmente ela amansa a voz e recolhe as garras. Gata no cio.

- As crianças voltam da creche só depois das cinco e meia...

Maria topou! Mais que depresa o Zé quer ir para o barraco da ex, oferece dois dos fardos plásticos para ela levar, são cinco no total. Ela imagina o peso, coloca dengo na voz para reclamar uma dor constante no braço. Faz pose de macho, pega todas as sacolas, enfia a mão nas dez alças, o peso cortando os dedos da mão esquerda. Passa a mão livre na cintura da fêmea que se desvencilha. Ela topou, mas avisa que não quer que o povo da rua saiba. Eu penso que Maria quer é esconder do Oreste.

Dia seguinte recebo um pedaço do bolo. Agradecimento pelos balões. Maria Normal desfia maravilhas da festa e reclama da prima do Zé.

- Rosa é uma abusada, pegou o pote inteiro do Toddy para fazer os brigadeiros e não devolveu o resto, disse que não sobrou. É capaz? - tenta me meter no assunto e eu esquivo.

- Vai ver é isso mesmo.

Maria resmunga mais um pouco, pega um pacote de arroz e manda marcar, já sei que esse também fica para o Oreste acertar.

Semanas de rotina depois Maria vem, pede outro pacote de arroz e solicita o telefone do mercado, vai ligar para o Zé. Anoto mais um real na caderneta e entrego o aparelho.

- Alô, Chama o Zé pra mim?

- ...

- Isso, Zé Comum.

- ....

- Encontra ele e diz que é Maria Normal, que vou ligar novamente em cinco minutos.

Só eu e ela no mercado. Até que seria uma mulher bonita, se não fosse tão judiada. Barriga mole, peito caído, fala muito palavrão. As pernas são fortes. Oreste deve suar para dar conta desse arrozal todo. Menos de dois minutos manda marcar mais um real na conta e liga outra vez. Não é justo mas eu marco cinqüenta centavos só para não perder o costume de cobrar. O Zé já estava esperando ela não prepara terreno:

- Tenho uma notícia pra você homi. Vai ser pai outra vez, tô de três meses.

- ...

- Do Espírito Santo é que não é seu filho-da-puta!

- ...

- Faz as contas desgraçado! Zé Filho fez aniversário quando?

Conversa mais uns minutos, chora. As lágrimas secam, ameaço marcar mais um real, ela manda o Zé tomar no olho do cu e desliga. Sai pisando duro, coxas grosas, a popa tremendo embaixo da saia de algodão.

Pelo que pesquei da conversa ele quer largar tudo lá do outro lado da cidade e vir pra cá. Acho que vai dar rolo esse assunto e penso quanto de arroz tem marcado na conta. Maria Normal sai, verifico as anotações, é quinto dia útil. No final da tarde fico na porta, Oreste passa eu chamo, ele paga. No meu tipo de negócio é muito bom saber algumas notícias antes delas se espalharem.