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MORANGO SOBRE A MESA
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Alex
Sens Fuziy
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O que o gato fazia sobre a cadeira de palha enquanto observava a mesa central da cozinha era um mistério. Talvez não existisse tal mistério, e quem sabe o gato estivesse apenas querendo perder tempo. Era um típico gato cinza, destes que se camuflam no sofá e são confundidos a toda hora, não sabendo-se se é sofá ou gato, ou felino ou tecido aveludado. Eu mal havia colocado o primeiro pé na cozinha quando o vi, Rofo. Um gato negligente, quase fora de regra e qualquer questão ética. Pouco comum prum gato ficar assim na cozinha, a não ser quando usa as bandejas de carne e sardinha como programa televisivo. Rofo era o típico gato que nunca iria com a minha cara, porque eu era mais alto e eu comia sardinhas. Ele ganhava uma ou outra quando todos comiam, quando eu o fazia, preferia comê-las no meu quarto ao som de um jazz. Rofo odeia jazz. Todas as vezes que ligo meu rádio com este som, ou encontro Rofo sobre o telhado do vizinho ou no porão da casa. O pé com o qual eu havia entrado na cozinha era o esquerdo. Mau começo, eu sabia. Disputar aquele território com Rofo era de praxe, quase que como uma regra, imposição desde o meu nascimento. Eu já havia perdido a conta de quantos anos aquele gato empoeirado tinha, talvez mais que a minha avó, afinal bicho é instigante, ultrapassa qualquer entendimento humano e temporal. Ele desviou o olhar para mim. A mesa havia deixado de ser o centro das atenções. Agora seria eu. E ele. E a cozinha como cúmplice de um crime que eu já temia. O gato iria me expulsar dali, com suas unhas afiadas. Aprendi cedo que os gatos sabem usar unhas e dentes, por isso levava comigo uma cicatriz na testa em forma de J. J de jumento. Deixei de olhar para ele. Não merecia esta atenção toda que eu parecia dar. Aí eu vi. Um reluzente e suculento morango estava jogado sobre a mesa da cozinha. Um único morango, avermelhado, quase em sangria desejosa. E eu imaginei cada gota daquele suco contido na fruta sendo levado pelo meu organismo. E meus dentes partindo aquela pele perfumada. Mas Rofo também queria o morango. E parecia querer disputá-lo comigo. Não queria saber de peixes, mimos, cozinha, Erla (a gata da madame ao lado), cama, água, nada disso. Queria o morango. O único morango que eu vira em dias. Desde quando gato se interessa tanto por morango? Ou por uma única fruta jogada sobre a única mesa que mede mais de dez gatos empilhados? Achei que estava ultrapassando a linha inimiga. Aquele gato já fazia suas experiências psicológicas, eu já podia sentí-lo mexendo com meu cérebro, afinal quem imaginaria aquela cozinha como um campo de batalhas, um território minado na Tchecoslovaquia? Eu. Percebi que o morango parecia ser melhor do que o imaginável. Rofo se esquivou para outra cadeira, ainda mais perto da mesa. Agora parecia querer controlar a situação toda. E a mim também, pois eu já estava a três passos da mesa. Sabia que pegar aquele morango me custaria caro, talvez apenas guardasse mais lembranças cravadas no rosto, talvez um C de covarde ou de corajoso, até demais. Dei outro passo. Se esticasse minha mão estaria muito perto de uma paraíso gastronômico. Um morango grande e gordo, vermelho e simpático - todas as características de tia Frida. Engraçado como algumas frutas se parecem com nossas tias. De repente um miado alto entrou pela janela da cozinha. Rofo ergueu os bigodes cor de chuva e saiu pela porta que dava para os fundos. E então eu peguei. O morango estava em mãos, devido a um miado vindo dos céus. Pensei que fosse Erla parindo, mas quando Rofo voltou parecia estar contente. Então Erla não havia parido. Olhei para ele com meu maior sorriso de satisfação. O sorriso do triunfo, da vitória. Imaginei aquele morango numa redoma de cristal, dentro de uma taça de ouro, envolta pelos meus braços e milhões de morangos contentes correndo atrás de mim. Um pomar andante. Rofo parou insatisfeito ao lado da porta e lá ficou. Por um momento pensei que sorria, como que para debochar do inexistente. Então mordi o morango com gosto. O suco explodiu entre os dentes e foi resvalando pela língua até desaparecer. Abri meus olhos e vi a vitória brilhando nos olhos do gato. Dentro do morango havia uma grande mancha preta. Preta de podre. Então senti. O morango tinha gosto de graxa, cor de fruta putrefata e aspecto de defunto. Grande vitória de Rofo. Nem sempre as tias são tão simpáticas. |