COTIDIANO EXÓTICO
Valéria Nogueira Eik
 
 

O cocho, ao relento, estava abandonado há muito tempo.

Dentro dele, havia um colchão de crina, velho e apodrecido por inúmeras estações.

E um resto de tinta vermelha ainda podia ser visto em algumas partes deste berço improvisado.

A noite caiu rapidamente sobre a minha solidão, trazendo o medo como companhia, neste pesadelo sem fim.

Não vi estrelas.

Nem vi a lua.

Enxergava apenas o breu desta imagem abstrata, pintada em preto e ruídos.

Os barulhos transformaram-se em resmungos e roncos da velha noite, irritada com a própria insônia.

E eu, num transe hediondo, flutuei até o colchão e adormeci, sem saber para onde iria, neste sono induzido pelo pavor.

Sonhei com crianças felizes, salários atraentes, casas brancas e confortáveis, um trânsito pacífico, e uma escabrosa e inquietante harmonia.

Acordei sobressaltada, mas, a noite ressonava tranqüila sobre mim, e seu hálito fresco enxugou os meus suores e me acalentou.

E quando a claridade do dia desabou sobre o meu rosto, cara a cara, apalpei um resto de sonho, grande e escuro, repleto de ratos.

Teriam sido paridos pela noite, a mesma noite sob a qual eu estivera deitada por longo tempo?

Corri, horrorizada, com os ratos em meu encalço.

E eles riam e gargalhavam, dando pulos ritmados, num batuque agressivo e forte, quase alcançando o meu coração arquejante.

Tropecei em coisa nenhuma e caí num espaço totalmente branco, sem forma, sem ar, sem horizonte.

E lentamente, voltei à vida.

Meu quarto se encontra na penumbra de um amanhecer indeciso.

Os móveis estão com um semblante ainda sobrenatural, rostos estranhos, cheios de olhos parados e bocas arreganhadas.

Monstros que se mantém calados, esperando a hora da metamorfose, como lobisomens, que aos primeiros raios do sol, voltam a ser homens.

E, quando o sol apareceu, dando batidas vigorosas em minha janela, tudo se transformou rapidamente.

A noite se converteu em dia, e a loucura fingiu sanidade.

Um banho, roupas limpas e um gole de café.

A porta abre-se para um novo dia.

Vou ao encontro do cotidiano.

Trânsito violento, barrigas com fome, doenças nas filas, medo nos olhos, grades nas janelas, e a ignorância solta pelas ruas.

Somente extravagâncias de uma realidade conhecida e exótica.

Insanidades absolutamente aceitas e compreensíveis.

E neste contexto absurdo, onde o real se mistura ao imaginário, sou apenas um soldado, lutando desesperadamente pelo direito de voltar para casa ao final de cada dia.

Sou um ser (humano?) esperando ansiosamente por mais uma tranqüila e cálida noite de demência e pesadelos.

 
 

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