A
GALINHA RUIVA
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Maria
Luísa Rocha
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Era uma época boa. Nos bairros praticamente só existiam casas, com jardins floridos e pequenos pomares nos quintais. As crianças brincavam alegres todas as manhãs nos passeios bem cuidados, pulavam maré, jogavam queimada e dançavam cirandas. Às vezes entravam pra dentro das casas e as brincadeiras aconteciam nos jardins, entre borboletas e passarinhos. O clube era das luluzinhas, os meninos não brincavam com as meninas. Maria Lúcia morava na casa branca com janelas verdes; tinha um pequeno portão marrom que deveria ser aberto por uma tramela, e era necessário descer alguns degraus para se chegar ao jardim. A casa era abaixo do nível da rua, mas muito ensolarada, muito clara e acolhedora. A menina tinha uns seis anos, era muito miudinha, com lindos cabelos castanhos cortados rente ao pescoço, uma franjinha quase a cobrir os olhos inteligentes e curiosos. Suas melhores amigas eram duas japonesinhas filhas de um floricultor que adorava fazer feijão doce no jantar. Os pais de Maria Lúcia eram muito amigos da família nipônica, muito reservada, pouco dada ao convívio social com pessoas que não eram da mesma raça. Mas a amizade com as meninas do bairro era bem aceita e cultivada e a turminha podia se divertir até. Quando Maria Lúcia era menorzinha, com uns quatro anos, cismou um domingo de se esconder atrás de um sofá e lá ficou por várias horas, achando muito divertida a preocupação e a correria da mãe e das tias que foram chamadas com urgência para procurar a sumida. Foram até a igreja que ficava na esquina: quem sabe a menina escapara para ver as imagens dos santos? Como já disse, Maria Lúcia sempre foi muito curiosa e queria saber todas as histórias de santos e também, é claro, as de fadas e duendes e monstros. Finalmente a menina foi descoberta e a mãe ralhou muito e a ameaçou: - Maria Lúcia, não faça mais isto, que feio! Sua sorte foi ter se escondido aqui dentro de casa e não ter sido encontrada pelos ciganos. Você não sabe como os ciganos adoram roubar menininhas e sumir com elas pro resto da vida... Viram escravas e acabam morrendo. E nunca mais vão ver a mãe de novo... Maria Lúcia cresceu com muito medo dos ciganos. Eram seres quase de outro planeta, isolados, estranhos, perigosos, mas imensamente bonitos, coloridos e atraentes. Foi seu primeiro contato com o perigo, um tremor percorria sua espinha quando sonhava com eles à noite. Uma bela manhã, Maria Lúcia e as amigas encontraram-se mais cedo do que era costume e resolveram brincar de esconde-esconde no jardim. O sol estava bem quente e os gritinhos das meninas misturavam-se com os latidos da cadelinha Til e o canto dos bem-te-vis nas romãzeiras em flor. De repente, Maria Lúcia viu-se sozinha a contar até trinta, enquanto as meninas procuravam um lugar bem difícil para não serem encontradas com rapidez. De repente, um frio percorreu-lhe o corpo suado. Ela olhou pra cima do portão e viu um carro parado com a porta aberta e um homem a observar dentro do jardim, um cigarro na ponta dos dedos. Maria Lúcia, apesar dos seus pequenos seis anos, teve um pressentimento horrível que quase a paralisou. Alguma coisa estava dizendo a ela pra se precaver, era como um sapinho sentindo a presença de uma cobra disposta a dar o bote derradeiro. E a reação veio rápida: - Mãe, vem cá rápido. Corre aqui, mãe. O homem imediatamente moveu-se e entrou no carro, saindo em disparada. Maria Lúcia cresceu, mudou-se do bairro, virou uma moça muito estudiosa, que adorava ler todos os tipos de livros. Como lia... Mas suas noites eram assustadoras. Sempre sonhava o mesmo sonho: um homem subia no telhado de sua casa e tentava entrar, arrombando a janela. Maria Lúcia suava em bicas e sentia que o quarto estava ficando sem ar, o homem aproximando-se mais, cada vez mais, até que, no último momento, quando ele finalmente ia conseguir abrir a janela, o sonho se desfazia e Maria Lúcia acordava em prantos, apavorada. Este pesadelo perseguiu-a por muitos e muitos anos. Aí um dia, conversando com sua mãe, começaram a falar de sonhos. Sua mãe, dona Chiquinha, contou que a vida toda também teve um mesmo sonho, que a atormentava: estava correndo aflita e cansada, carregando um enorme armário nas costas, tentando pegar um trem que nunca a esperava. Ela gostaria de entender a dinâmica do sonho, o seu significado e sua relação com sua vida. Mas nunca encontrara a resposta. E Maria Lúcia contou o seu sonho, do ladrão que estava sempre a persegui-la, tentando entrar no quarto. Dona Chiquinha riu e falou que era fácil a solução desta equação. E repetiu pra ela a história da galinha ruiva, uma história infantil, em que a galinha é raptada de um terreiro por um mendigo que a leva embora num enorme saco de pano para, mais tarde, fazer dela um ensopado. Mas no meio do caminho, na primeira distraída do homem, quando ele faz uma parada pra descansar, ela corta o saco com uma tesoura que ficava em sua bolsinha, põe uma pedra no seu lugar, costura de novo e foge rapidamente. Dona Chiquinha explicou também que, quando Maria Lúcia ouviu esta história pela primeira vez, tinha ficado muitíssimo impressionada e sempre pedia pra repetir a proeza da bichinha. E toda vez os olhos se arregalavam e a respiração se acelerava. A partir deste dia, Maria Lúcia nunca mais sonhou com o ladrão do telhado. Dorme tranqüilamente, ronca até, e - o melhor da história - não tem medo de nada, mas de nada mesmo, nem de seqüestro. |
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