CHEIRO DE MATO
Luís Valise
 
 

Os amigos insistiam:

- Vamos, Heloísa, sem você não tem graça, a turma fica desemparelhada. Depois o Mauro te leva pra casa. Não leva, Mauro?

- Claro que levo! Faz tempo que espero por essa chance!

- Todo mundo: Vamos! Vamos! Vamos!

Heloísa se manteve irredutível. Não ia beber com os colegas de escritório. Ia direto pra casa.

Dois ônibus, bem longe do centro. Já era noite, a estradinha estreita e esburacada. Pensou no Mauro. Ele não era feio, mas era metido a engraçadinho. Sempre oferecendo uma bala, um chocolate, ela sabia o que ele queria. Todos querem o mesmo. E o Mauro tinha um sorriso bonito, aparência limpa, saudável. Era sub-chefe de seção. Tinha carro.

Depois do ônibus ainda tinha um pedaço a pé. As ruas estavam desertas, silenciosas. Em algumas casas podia ver o brilho da televisão pelas janelas. Ouvia seus passos batendo na calçada de cimento. Nunca teve medo de andar sozinha. Até morava sozinha. Lembrou de novo do Mauro. Se viesse traze-la decerto ia querer entrar. E como morava sozinha, ia querer algo mais... Sempre querem. Pelo menos é o que ouve das amigas, porque nunca permitiu que a trouxessem para casa. Conversava no escritório, ou no almoço, e só. Lembrava do aviso da mãe, quando veio para a capital:

- Abra o olho com homem. Nenhum presta. “Aquilo” só depois de casar.

Às vezes ela sonhava com “aquilo”. Nunca lembrava da cara do homem do sonho. Só lembrou no dia em que sonhou com o Mauro. Foi bom, no sonho. Ele foi delicado. Não pediu nenhuma sem-vergonhice. Ela lembrava bem: ele apagou a luz, afastou as pernas dela gentilmente, subiu e encostou o corpo no dela. Entrou sem doer, e ela pensava que doía muito. Vai ver que só não doía no sonho. Mas não doeu, e ela sentiu uma quentura lá embaixo, ele parecia remexer lá por dentro, nem demorou muito pra ela gozar. E foi bem melhor do que ela sentia quando fazia com a mão.

Chegando em casa abriu o portãozinho que ficava trancado à chave. Era baixinho, mas ela trancava assim mesmo. Viu um homem que parecia dormir na calçada, algumas casas depois da dela. Ficou com pena. Essa vida, essa vida... Acendeu a luz da varandinha, abriu a porta da sala, entrou, fechou com a chave e atravessou a tranca de ferro. Primeira coisa: ligar a televisão. Foi para o quarto, tirou a roupa, sentiu a calcinha úmida. Gostaria de sonhar com o Mauro de novo. Deixou as roupas na cadeira para tomar um pouco de ar. Colocou um vestidão folgado e comprido, uma espécie de camisolão, bom pra ficar à vontade. Preparou o prato de comida, ligou o microondas. Ajeitou a bandeja para comer na frente da TV. O telefone tocou. Nunca tocava.

- Alô.

- Heloísa? Mauro. Chegou bem? Tudo bem?

- Tudo bem, Mauro, não precisava se incomodar...

- Não é incômodo, é sempre bom falar com você. Fiquei preocupado.

- Estou acostumada.

- Você não tem medo de ficar sozinha nesse bairro, à noite?

- Este bairro não é pior que o seu. Boa noite.

O microondas apitou, Heloísa pegou a bandeja e voltou para a sala. Sentou-se no sofá, ficou olhando o garfo, revirando a comida. Quê que o Mauro tinha que falar no bairro? Só porque era um bairro pobre? Periferia? Deu algumas garfadas, pensou que talvez ele estivesse apenas querendo ser gentil. Arrependeu-se de ter desligado daquela forma. Amanhã pediria desculpas. Talvez até deixasse que ele a trouxesse em casa. Mas antes ele teria que prometer que não tentaria nada. Ele tinha um sorriso bonito...

Lavou a pouca louça do jantar, enxugou, guardou, voltou para a sala. Ia começar um filme, “O Perigo das Sombras”, não gostava de violência, mudou de canal. Mudou de novo, e de novo. Desligou a TV. Bem que o Mauro podia estar aqui agora, mas só pra conversar. Só. Já passava das dez. Foi escovar os dentes.

Trocou o vestidão por uma camisola amarelinha, com florzinhas bordadas em azul claro. Será que o Mauro gosta de amarelo? Deitou, apagou a luz. O sorriso do Mauro iluminava o quarto. Precisava deixar de ser boba. Acho que a mãe não sabe tudo...

Ele esperou bastante. Vinha estudando os hábitos e horários dela há algum tempo. Pulou o portãozinho, andou por um corredorzinho lateral a casa, tirou do bolso um barbante onde tinha amarrado várias chaves velhas, e ficou tentando abrir uma porta que dava para o quintal. Conseguiu. Esta não tinha tranca. Acostumou os olhos na escuridão da cozinha. Os pés descalços tinham a sola grossa e enegrecida, de andar pelas ruas. As unhas eram compridas e pretas de sujeira, como as das mãos. A roupa imunda exalava um cheiro forte. Abriu com cuidado a gaveta sob a pia, tateou até encontrar o lugar das facas. Buscou com os dedos a mais pontuda. Foi da cozinha para o corredor, onde viu os contornos de duas portas. Girou lentamente a maçaneta da porta à esquerda. Podia ouvir o próprio coração num ribombar profundo. Espiando para dentro, viu que aquele era o banheiro. Segurou com força o cabo da faca e dirigiu-se à outra porta, que abriu sem ruído. Sentiu perfume silvestre, mesmo sem saber o que era silvestre. Viu o vulto deitado na cama. De lado, pernas levemente dobradas. A camisola clara estava um pouco enrolada, ele viu o começo das coxas grossas. O rádio-relógio marcava duas e quinze, e jogava uma penumbra esverdeada sobre o corpo deitado. Chegou mais perto e ficou parado, criando coragem, decidindo o que fazer: estuprar e só depois matar, ou matar logo e ficar mais sossegado depois? Como um caçador que não quer estragar a pele da presa, procurava o lugar onde cravaria a faca. Ele costumava chegar com a lâmina bem perto do alvo, e sempre fechava os olhos na hora da estocada, pois tinha pavor de sangue. Foi quando ela se mexeu.

Heloísa passou a mão sobre o nariz, como se quisesse afastar um mau-cheiro. O homem ficou imóvel. Ela virou de barriga para cima, e sem abrir os olhos buscou aninhar-se melhor sobre o travesseiro. Ele abriu o botão da calça e deixou que esta caísse sobre o tapete. Puxou a camiseta sobre a cabeça, e também jogou-a no chão. Heloísa passou novamente a mão no nariz. No torpor do sono, ela tinha a impressão de cheirar um pano molhado de urina guardado no forno. Seu braço moveu-se lentamente em direção ao abajur, e quando ela acendeu a luz tudo ficou escuro.