NOSTALGIA PUERIL OU FLUXO E REFLUXO
Flávio Martins
 
 

“Because I am a dreamer, and I dream my life again, again, again (...)”
Ozzy Osborne

Quando eu era criança eu sonhava. E sonhava muito e meus sonhos tinham personagens lendários e mágicos. Cenas tão reais que pareciam cenas vividas. Eu sonhava transcendental, mesmo sem saber o que era isso. Sonhava natural, sonhava ficção e romance. Nos meus sonhos havia sempre uma ponte que caía e uma situação de perigo. Eu tinha medo. Havia também uma vontade louca de chegar a algum lugar desconhecido. Nos meus devaneios pueris eu voava sem ter asas e quando alguém me perseguia, eu corria sem sair do lugar e escapava. Com medo. Às vezes, eu ficava confuso com um rio ou uma torneira que aparecia e eu fazia xixi na cama. Sonhava que estava num balanço muito alto, sem medo de cair, e o balançar era eterno, seguro. Sonhava com o papai me levando pra tomar sorvetes e amanhecia com sede. Sonhava com a professora de matemática e amanhecia molhado. Molhado e com medo.

Nos meus sonhos eu tinha medo, no entanto era um medo estimulante. Meus inimigos eram fortes, porém imaginários. Meus medos eram ventos num milharal, sempre rápidos e passageiros. Eu me assustava e corria e corria e vencia. Meus inimigos eram continuamente derrotados. Sempre aparecia uma escada ou um precipício e eu caia e não me machucava. Nos meus sonhos havia abismos e cavalos. Sempre sonhei com cavalos. Quantas vezes sonhava, acordava, e o sonho continuava como um filme com intervalo comercial! Meus sonhos eram como labirintos e davam voltas. Eram cíclicos, se na época eu soubesse o significado dessa palavra. Meus sonhos eram tão imagéticos como a aquarela de Toquinho e Vinícius.

Quando criança, assim que aprendi a escrever, costumava anotar meus sonhos num caderninho que se perdeu no tempo. Hoje, ainda escrevo, mas não anoto o que sonhei, escrevo ilusão, crio fantasias. As que sonho, essas me fazem sofrer. Tenho medo. Não tenho pretensão alguma de ser reconhecido pelo que escrevo ou sei, todavia sou assolado pelo que não sei. Sou um especialista em nada. Sei muito de algo que é apenas um detalhe. O que escrevo nada tem de novo, escrevo sobre a angústia humana, sobre o medo, sobre o futuro, sobre o devir, sobre o há de ser. Muitas vezes eu tenho vontade de fazer coisas, mas, ou me falta coragem, ou a profissão e a condição social me proíbem. È medo. Então escrevo e quando escrevo, sou um super herói. Enfrento o mundo. Sou invencível e, se este mundo não me basta, eu crio, sonho um outro. Mas a verdade é que quando sou real, tenho um medo que não é mais estimulante, desafiador como noutros tempos. É um medo real. É Medo. Meu medo hoje é para além do aspecto onírico. É um dragão que consome meus dias a partir de cada manhã. Meu lado imaginário é hoje tomado por um Bucefálo negro e ameaçador que pisoteia minhas esperanças e meus desejos. Não acredito que sonho, entretanto, sinto que sofro. Sofro de um mal chamado fluxo de consciência. Sonhar é sofrer dormindo, sofrer é sonhar acordado um sonho com um abismo real e amedrontador. Não há mais o Gato que elucida o caminho no labirinto que é meu pesadelo. Quem dá as cartas agora é um palhaço com cara de ditador e que me assusta. Meus personagens da infância são hoje meus vilões, cresceram comigo.

Quando era criança eu pensava que sonhar era viver uma outra vida enquanto dormia. Hoje acredito que sonhar é como uma lei da Física. Com ação e reação, fluxo e refluxo. O mundo real é o lado real. O sonho é o lado avesso, upside down, e a loucura é um sonho vivido. Sonhar é como viver em capítulos, uma estória que não tem fim e que é contada por um narrador onipresente, onipotente. Nos meus sonhos, vivo representando um papel que não é meu. Sou dirigido por um diretor maluco que me faz interpretar uma estória dentro da estória, dentro da estória, dentro da estória. Agora tenho um medo segmentado. Sou um ator-fantoche e o enredo da minha vida é um fractal. Para mim, sonhar é sofrer aos pedacinhos, fragmentando. Meu balançar ainda é eterno como nos sonhos de criança, mas agora tenho medo de cair. Tenho saudades dos meus sonhos infantis. Tenho lembranças das estórias ouvidas ao pé da cama que embalavam meu sono e desenhavam na minha memória desejos em forma de sonho. Meus sonhos hoje são pesadelos terríveis como rabiscos malcriados e por isso, pelo menos mais uma vez, gostaria de ouvir a mamãe dizendo:

-Passe a mão na cabeça, menino, que assim você esquece o sonho.