O MILAGRE DE EINSTEIN
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Danilo Barreto
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Chovia. Por passos cambaleantes, ele tentava desvendar o caminho entre as poças lamacentas e o terreno escorregadio que já o fizera cair mais de uma vez naquela noite - os joelhos iam tingidos de sangue. Na mão, pendia uma garrafa quase vazia , não obstante, sustentava a embriaguez iniciada desde o finalzinho daquela tarde; mas quanto tempo se passou? Não sabia bem, afinal nem pensava nisso, ou tinha a certeza clara que era a hora de sempre - a hora da volta. E ao ver as poucas pessoas embaçadas que palmilhavam por aquela noite, sem por que, sentia uma estranha comoção; por isso aquele semblante, por isso o canto. Canto sem palavras, sem cadência, sem paixão, apenas pedaços de sentimentos que escoavam numa melodia gutural. Tudo ia calmo, apesar de cínico. Inferno! exclamou irritado, não conseguindo conter a erupção que uma lembrança infundira em seu peito. Fui o primeiro... miseráveis!, pensava ou, talvez, gritava - já que uma linha muito tênue separa ambas num espírito embriagado. Fez um gesto de arremessar a garrafa contra parede que se alevantava em sua frente, porém antes que pudesse completar o ato, percebeu que lhe faltava algo. A verdade é que a garrafa deslizara de suas mãos a algumas quadras atrás. Mas como queria ter aquela garrafa! Não, não, não a garrafa. Uma faca! Uma faca! Seus punhos fechados davam cutiladas no ar, enquanto seu ódio ansiava que fosse as costas de um homem o alvo, e a visão de sangue que se afigurava em sua mente imprimia-lhe um enorme desejo de ver a face aterrorizada de sua vítima. A imaginação cedia incontinenti: aqueles olhos assustados, o rosto moreno contorcido de dor, com certeza, eram do miserável Valdo. Sim, seria a vingança. Lembrava quando teve a idéia, previra o tempo chuvoso, encontrara o produto ideal; por fim, aparecera nas ruas com seus guarda-chuvas reforçados, amplos e muito baratos. Como lucrara naquela semana! Alguns dias depois, entretanto, Valdo surge rindo alto e anunciando seu novo produto - eram os mesmos guarda-chuvas, ainda com preço menor. Desgraçado! Foi o fim de uma das poucas alegrias que lhe deu a maldita vida de ambulante. Já se distanciara bastante da faca, do sangue e de seus pensamentos assassinos, pois acabara de chegar numa praça calma, de muitas árvores, bancos e alguns casais espalhados - lugar que absorveu completamente sua frágil atenção. Tão logo chegou , deteve-se em frente de uma estátua de mulher (ou alguma figura mitológica) com o busto descoberto e com trajes talvez gregos. Ao cabo de alguns minutos, aquela imagem o fez lembrar de sua esposa, por isso ele murmurou o nome dela baixinho, de si para si. Não que aquele corpo de estátua talhado com tanto esmero pelo artista pudesse ter alguma semelhança com o de Jandira, não, não era isso; podia-se dizer que era o inverso - Jandira era gordinha. Eufemismo miserável, ela era quase um urso! Começou a sentir formigar algo atrás do pescoço. Por que se casou com ela? Já pensara sobre isso, mesmo quando estava sóbrio, acabou por crer que foi o sorriso - muito por causa dele. Também, não se podia prever que ela iria engordar tanto ,nunca foi nem próxima de ser magra, mas do seu corpo de outrora, imaginar aquele destino, era impossível .No entanto, seu sorriso!Lindo! Um olhar lascivo, dentes grandes, mais as comissuras de seus lábios carnudos - tudo adquiria um contorno de safadeza, que lhe era irresistível. Porém, há um motivo além do que ele consiga encontrar em suas reflexões: quando estava com ela, sentia-se maior. Por medo de perdê-lo, mesmo de achar que não poderia conseguir nada melhor, Jandira sempre tentava agradá-lo, prestava atenção no que ele dizia, cedia a seus pedidos e ria sempre, ou melhor, quando ele quisesse. Assim ficar ao lado dela era o lugar mais agradável, visto que não encontrava essa admiração em ninguém, nem na própria mãe, que sempre lhe prenunciou, convictamente, um futuro desgraçado - o que não foi de todo errado. Pensativo, permanecia frente à escultura, agora, mais entretido com a perfeição daqueles seios de pedra. A cócega em sua nuca persistia. Foi quando ele entrou em uma linha de lembranças que lhe impeliu a continuar a caminhada. Passos terrenos, e a mente trilhava ,vagarosa, por memórias recentes: Voltava para casa, passou por aquela mesma praça, havia bebido muito também, a noite avançada, então chegou em seu endereço. Abriu a porta, mas após ultrapassar a soleira sentia uma sensação de medo terrível, então, concentrou-se, empertigou-se, realizava passadas regulares, equilibrando o corpo a todo custo, os olhos lerdos miravam a porta do banheiro que jazia semi-aberta - aquilo adquiria algo de salvação - aproximou-se bastante, quase conseguia sentir-se dentro, seus lábios contorciam levemente num sorriso, sua mão principiava-se a empurrar a porta, livrando a entrada para a primeira perna que já adentrava, quando "Bebeu, de novo, sua desgraça!" e um sopapo violento na nuca, cujo peso da mão fez todo o seu corpo arquear, quase o derrubando ali mesmo. Jandira com os olhos arregalados e com feições inumanas ainda buscava saciar toda sua raiva: seus punhos cerrados executavam incessantes socos no corpo magro e sem forças de seu marido que, por milagre, continuava de pé. Porém, depois dela executar um forte golpe na região do rim, ele tombou no chão do banheiro. E Jandira, finalmente, foi dormir. Distraído com essas memórias, acabou tropeçando em uma provável pedra que lhe tolhia o caminho, e, na tentativa de retomar o equilíbrio, encetou uma corrida atabalhoada para frente, mas o efeito foi contrário. Estava preste a estatelar-se no chão outra vez, porém, por sorte, muita sorte, um banco aparece e abraça sua queda. Apesar de ter evitado mais uma ferida, ele xingava muito. Depois de alguns instantes, ainda tentou erguer o corpo, mas decidiu ou foi decidido pela circunstância que descansaria um pouco ali. A atração que o lar exerce em todos não parecia ser capaz, em seu espírito, de conseguir vencer o sono que lhe fechava as pálpebras. Ele começava a adormecer calmamente, enquanto nos seus lábios aflorava, por murmúrios, um último "desgraça!". Olhares de transeuntes desatentos o tomariam por um bêbado derrotado, escória dos homens, um que foi deixado para trás por este mundo que escolhe seus eleitos - ser passível de desprezo. Estúpida ilusão das aparências que fascina os humanos. Alguém atencioso, sensível aos mistérios circundantes, perceberia claramente que também aquele corpo, deitado no banco, encerrava uma prodigiosa deformação tempo-espaço. |