VIOLÊNCIA, PAZ, AMOR E SANDÁLIAS HAVAIANAS
Claudia Sanzone
 
 

Imagine a cena: passa de meia-noite e você vem sozinho ou sozinha andando por uma rua deserta. A iluminação é parca, o que não tem sido raro desde os tempos de racionamento energético. Um indivíduo vem em direção contrária. Veste um casacão, tem um andar meio gingado e, tridimensionalmente falando, ostenta um físico bastante superior ao seu.

Dá medo, não adianta. O bom senso até tenta se insinuar, aconselhando não julgar mal os outros, mas, coitado, é logo sufocado por uma avalanche de adrenalina. A vida urbana tem dessas coisas: a aproximação de um desconhecido, principalmente de madrugada, é um inimigo em potencial até que se prove o contrário. E quem vai esperar pra ver? Ou melhor, pra provar? Tenho certeza que até o mais fervoroso defensor dos direitos humanos passa um sufoco danado nesses momentos periclitantes.

Aqueles que podem pagar contratam segurança, guarda-costas, homem de confiança, jagunço, capanga e o escambau. Quem não pode ter ou não quer um protetor humano, arruma um cachorro. Na maioria das vezes ninguém faz questão de adquirir propriamente uma fera, tanto para tomar conta da casa, quanto para servir de companhia em caminhadas mais despreocupas pelas ruas. As pessoas preferem um cão de aparência assustadora, compatível com um exterminador, mas que possua uma alma doce, como um querubim. Em outras palavras, um cordeiro em pele de lobo.

A raça que mais serve ao propósito em questão é o boxer. Tem cara de mau, cabeça larga, focinho negro e chato, corpo atlético e um latido forte. Assusta? Assusta, claro. O maior receio de um proprietário da raça é que o inimigo oculto ou o invasor incerto cometa seu delito usando palavras doces e uma linguagem gugudadá. O boxer pode entender que o infrator é uma criança e aí se derrete todo, vira um banana.

Dia desses uma cliente minha precisava sair de casa à noite. Havia um sujeito corpulento deitado na calçada, atravessando a saída e, obviamente, obstruindo a passagem. A boxer postou-se quase imóvel junto ao portão e do lado de dentro, observando atentamente aquele ser desconhecido. A cliente e a filha, únicas residentes humanas da moradia, não sabiam o que fazer. O homem parecia bêbado e, pelos trajes, um maltrapilho, um pedinte. Resolveram cancelar a saída.

No dia seguinte o homem continuava lá, do lado de fora. E a cadela de plantão, do lado de dentro. A mãe pensou em chamar a polícia; a filha, avessa à violência, depois de dar bom dia às samambaias, refutou a idéia.

- Pô, mãe, nada a ver, aí. Temos que pensar que esse homem, enquanto ser humano, é uma vítima da sociedade. Violência só gera violência, mãe. Pô...

- Que bobagem, menina! Agora a gente vai ficar enfiada dentro de casa por causa de um molambento pinguço que resolveu se espojar aí no portão?

- Que isso, mãe! Pô, onde fica o respeito por todas as criaturas? Entenda minha colocação, mãe. A nível de igualdade, assim como as pessoas, os seres humanos são donos dos mesmos direitos.

- Então vá até lá bater um "papo-cabeça" com o bebum, ora bolas!

- Vou mermo. Essa coisa do diálogo, do lance das palavras, vai estar sempre levando ao entendimento na paz, entende? Sem essa de agressão, aí.

- Ué, não vai abrir o portão e levar o papo mais de perto?

- Não, aí. Pode parecer um lance de coação...

- Sei, sei...

Bastou a aproximação "da alma caridosa" para o homem se alongar num movimento largo e ruidoso, como se estivesse se espreguiçando e tentando se acomodar melhor, sem pretensões de interromper o sono. A cadela, ao lado da moça "love and peace", assustou-se, deu um pulo pra trás e ladrou alto. O sujeito mandou a boxer calar a boca, "Vá pro inferno, cachorro desgraçado! Eu quero dormir!".

- PORRA, MÃE, CHAMA LOGO A POLÍCIA!

Na calçada restou apenas o par de chinelos. Quem disse que as sandálias havaianas não soltam as tiras?