VESTIDO RUBRO
|
Cármen Rocha
|
A pobre Eudóxia. Levantava na modorra. Limpava a baba, semi-abria os olhos. Repuxava os cabelos para trás. O pessoal da favela já conhecia Doxa. E naquele amanhecer sujo e desolado ensaiava passos confusos para ir para o depósito, ali mesmo, catar o lixo. Se não fosse a aparência de nojo, iriam perguntar como se agüentava. Corpo acinturado, gingado de menina, alquebrado embora, parecia não se importar com fome e miséria. Conservava beleza antiga. Recolhia o que agüentava, entregava e pegava seus tostões. Trocava por qualquer comida. Dormia o resto da tarde, num torpor misturado com melancolia. Família mal se lembrava. Há tanto tempo... Dormia na parte de trás do muro da construção, no chão do tonel abandonado. Encolhida da vida. E sonhava, porque ainda tinha resquícios. Naquela tarde, o diabo encarnara, descobre surpresa, sem mais nem menos, um vestido, rubro, como aquele que sonhara quando nos braços de seu homem. Brilhante, lindo, decotado e com saia farta. Abraçou-se a ele e voltou novamente a sonhar. E num laivo de consciência seus desejos retornaram e adormeceu. Acordou com um vento encantado. Queria ser. Num ímpeto soltou os cabelos... limpou-se, vestiu-se e se julgou mulher. Na clareira, o luar punha fogo ao vestido rubro. Ela não se importava e rodopiava e rodopiava. E cantava e cantava. Juntou gente. Os homens a cobiçavam. A saia num impulso louco parecia uma tocha viva até que a obsessão a tornou lasciva e corrupta. Lucíola, esse era seu nome, seu nome da noite. |