O CAÇADOR DE RATOS
Carlos Bruni

A reação de espanto da dona-de-casa, aliada à sua aparência, dava-lhe um ar ridículo: óculos de lentes grossas, rolinhos para cabelo debaixo do lenço na cabeça, além de um avental espalhafatoso, com estampa de flores e escrito no peito “sexta-feira” — era esse o dia.

Sem largar a vassoura, incrédula, perguntou timidamente:

— O quê?

— Caçador de ratos, madame! Sou caçador de ratos.

A mulher continuou sem entender. Seu interlocutor não deu-lhe tempo para tal.

— Eu caço ratos. Mato ratos. Livro qualquer casa desses bichos nojentos. É o meu trabalho.

Ela começou a se recompor:

— Sei... sei.... mas, o que o senhor quer?

O outro começava a se impacientar diante de tanta obtusidade, já que o cartão de visitas deixava isso claro: ele era caçador de ratos e ponto. Com o sol brilhando em sua calva e gotas de suor descendo pela testa até esconderem-se atrás dos óculos escuros, insistiu:

— Eu vim até aqui para prestar-lhe esse serviço: acabar com os ratos de sua casa.

O espanto dela começou a dar lugar à indignação:

— Ratos? E quem disse ao senhor que temos ratos aqui em casa? Esta casa, saiba, não tem e nem nunca teve ratos. De onde tirou essa idéia que aqui em casa existem ratos?

— Madame, disse o baixinho com as mãos cruzadas sobre a enorme barriga e fazendo os polegares girarem um ao redor do outro, — a senhora tem ratos na casa, sim. Apenas não notou, ainda. Posso garantir-lhe que aí dentro existem daquelas ratazanas capazes de atacar um cachorro.

Foi aí que a mulher perdeu a compostura:

— O senhor é muito intrometido e malcriado. Não sei porque está fazendo isso, se é algum trote ou coisa assim. Se não der o fora agora mesmo, chamo a polícia.

No que ele deu de ombros:

— A senhora é quem sabe, madame. Passar bem.

Enquanto a curiosa figura do caçador de ratos se afastava, a mulher entrou em casa espumando de raiva. O dia prometia ser bem agitado. Como se não bastasse a discussão que tivera com o marido logo pela manhã e invariavelmente motivada pela obsessão dela por limpeza, agora aparecia um maluco com o ultraje supremo: “Ratos”, disse para si mesma. “Não me faltava mais nada. E foi para a sala onde passou a espanar os móveis ainda pensando naquele estranho homem, quando pareceu-lhe ouvir ruídos, algo assim como passos de um pequeno animal correndo sorrateiro.

Parou, prestando a atenção ao barulho que, no entanto, logo desapareceu.

— Não pode ser! Deve ser minha imaginação. Bem que aquele desgraçado conseguiu mexer comigo. Voltou-se para ir à cozinha e deu um grito de susto: uma enorme ratazana passou correndo pela cozinha e escondeu-se atrás do fogão.

Refazendo-se da surpresa, agarrou uma vassoura e correu até o lugar , possessa. “Não”, pensou, “aqui nunca existiram ratos e não será agora que irão aparecer”.

Arrastou o fogão e nem sinal do roedor. Ela permaneceu parada, sem entender e, sem entender continuou, quando dois ratos correram pela porta saindo para o quintal. Começando a suar tentou imaginar o que estaria acontecendo. Tinha orgulho de sua casa, onde um grão de poeira era imediatamente banido, teias de aranha jamais se formavam e janelas com telas não permitiam a entrada de insetos.

Foi o suficiente para que arrastasse mesa, cadeiras e armários de seus lugares. Se ratos existissem por alí, ela os caçaria, pensou.

Parou, subitamente, sentindo um arrepio na espinha: “Caçar”, pensou. “Como ele sabia dos ratos”?

Puxou uma cadeira, sentou-se e não foi mais capaz de sair dali até a chegada do marido ao final da tarde.

— Que aconteceu por aqui? Um terremoto? Perguntou espantado com tal desordem, incomum naquela casa.

Ela só pôde balbuciar:

- Ratos... Ratos... Um bando deles. Temos ratos aqui um casa.

O sorriso dele foi, na mesma medida, irônico e enigmático:

— Não diga asneiras. Se eu não a conhecesse... Você tem uma mania impressionante por limpeza. Não pode ver sequer uma manchazinha no tapete e corre para removê-la com esse arsenal de limpeza estocado aí no armário. Também não pode ver uma xícara suja sobre a pia e logo trata de lavar e guardar. Isso não é tudo: usa nas tomadas esses aparelhinhos elétricos para matar insetos. E a casa foi dedetizada duas vezes este ano. Conseguiu se desfazer do nosso cachorro pois achava que o bicho enchia a casa de pulgas, mesmo dando banho nele dia sim, dia não. Nem meu canário belga — premiado — escapou da sua paranóia. Encasquetou que o bichinho transmitia doenças e acabei por vendê-lo só para não ouvir suas lamúrias. E agora você me aparece com essa história de ratos? Pelo jeito estamos partindo para uma, maaais uma, discussão. E completou, já com o rosto vermelho de raiva: — Enquanto isso, o jantar espera, não é?

A mulher começou a se reencontrar:

— Desculpe, amor. Vou dar um jeito nisso já, já. Tem comida semi-pronta na geladeira e num instante preparo alguma coisa. Vai tomar um banho, vai. Logo, logo, a gente janta.

Deu um jeito rápido na bagunça que se formara e foi preparar a refeição. Andando do fogão à pia e desta à geladeira, seu pensamento era um só: ratos. Tinha-os visto. Estavam por alí e sabia que era preciso acabar com eles.

De repente, uma idéia. Enfiou a mão no bolso do avental e achou aquilo de que havia se lembrado: o cartão que o misterioso visitante havia lhe dado.

O cartão era, para dizer o menos, de uma imaginação grotesca. Ao lado do nome grafado em letras góticas aparecia a figura de um rato sendo decapitado com um machado. Sentiu outra vez o arrepio que havia experimentado à tarde ao se lembrar do sujeito, mas seus afazeres a ocuparam mais do que aqueles pensamentos. Iria, no dia seguinte, ligar para o tal caçador e convocá-lo a acabar com os bichos. Não pôde deixar de sorrir ironicamente pensando no fato de até alí jamais ter aparecido um mísero camundongo que fosse.

Durante o jantar, seus pensamentos confusos não queriam deixá-la entender como estava tudo aquilo acontecendo. À sua frente, o marido mastigava pachorrentamente sua comida como se nada tivesse ocorrido, nem se alterando quando a porta da cozinha se abriu dando passagem ao misterioso caçador, sorridente, trazendo um enorme machado em suas mãos. Ela, contudo, ficou petrificada:

— O que você quer? O QUE VOCÊ QUER??? A estupefação dela começava dar lugar ao terror.

O marido, primeiro olhou-a com uma indiferença inexplicável e depois para outro, mas com a tranqüilidade de que recebe uma visita aguardada. Em seguida voltou a comer com a maior calma. O visitante se manifestou:

— Madame, eu lhe disse: Existem ratos nesta casa. Todos nós sabemos disso. Com essas palavras e ainda sorrindo levantou com as duas mãos o machado, acima da cabeça, para em seguida fazê-lo descer com violência.

— Podia esperar que eu terminasse de comer, foi o comentário do marido enquanto com o guardanapo limpava alguns respingos de sangue de sua camisa até então imaculadamente branca.

 
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