UM
MUNDO SEM COLHERES
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Bia
Lelles
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Contou sete faqueiros dentre os inúmeros presentes de casamento. Teriam talheres para uma vida inteira, pensou alegremente. Sentou-se, sozinha, em meio aos presentes e foi abrindo um a um. Num deles, o cartão dizia: "Não briguem perto do meu presente!", leu sorrindo a mensagem de uma colega do trabalho. Sete anos se passaram e um dia abriu a gaveta onde guardava os talheres e percebeu que não tinha mais colheres. Sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo, parecia um mau presságio. Tentou apagar de sua mente a imagem do espaço vazio, antes reservado às colheres. Mas onde elas teriam se perdido, afinal? Olhou pela pia e dentre a louça que aguardava para ser lavada, localizou duas ou três entre pratos e copos sujos. Nada nas panelas sobre o fogão, uma perdida próxima à churrasqueira na varanda. Mas eram sete jogos de talheres! Como podem ter sumido assim? - perguntou a si mesma, indignada. Lavou a louça, guardou tudo, limpou a cozinha como era de costume. Tentou esquecer o ocorrido, mas a imagem da gaveta sem colheres não saía de sua cabeça. Na hora costumeira tomou banho para esperar a chegada do marido. Após o banho, vestiu uma camisola simples de malha, já um pouco surrada. Olhou-se no espelho e sentiu falta do baby-doll vermelho que usara no começo do casamento... O marido chegou cansado como sempre, tirou os sapatos na sala, a camisa pendurada no sofá. Deu-lhe boa noite de longe e ela lembrou-se do quanto esperava a chegada dele e o costumeiro beijo, nos primeiros anos de casada. Pensou que como as colheres que desapareceram da gaveta, o amor entre os dois também havia se perdido no tempo. Sentiu medo. Um incontrolável e assustador medo da solidão. Até então não tinha dado conta da solidão em que vivia, cercada pelos afazeres domésticos, os cuidados com os filhos e o marido... Mas onde estava o amor? A paixão de antes que ardia em seus corpos? Inerte, parada diante da foto do casamento que enfeitava a estante da sala, lembrou-se que não fazia amor com o marido há muitos dias... Uns vinte, talvez. Apavorou-se. "Como deixou que isso acontecesse?". Correu desesperadamente para o quarto a procura da camisolinha de seda vermelha. Revirou as gavetas, derrubou os cabides, procurou até a exaustão. Sentou-se no chão do quarto, entre as roupas espalhadas e, com lágrimas nos olhos, deu-se por vencida. O símbolo do seu desejo por aquele homem devia estar junto com as colheres desaparecidas. Entendeu que sem perceber os anos se passaram e assim como não teve cuidado com as peças dos faqueiros ganhos no casamento, também não preservou o amor que unia o casal. Viviam mecanicamente há alguns anos, agora ela podia ver com clareza. Não havia mais beijos ardentes, olhares reveladores, cumplicidade. O pouco sexo que ainda faziam era mecânico, sem tempero, sem amor. As lágrimas desciam por sua face, molhando a camisola surrada. Tentou se lembrar da última vez em que havia sentido algum lampejo de felicidade junto daquele homem. Olhou-se no espelho e não conseguiu enxergar a moça sonhadora que há sete anos entrara naquela casa, carregando sonhos, esperanças de um casamento eterno, repleto de carinho, cuidado, amor. De repente, deu de cara com o marido parado na porta do quarto com cara assustada, diante do choro e da bagunça de roupas jogadas pelo chão. Ela tentou explicar, entre soluços, que não tinham mais colheres, deixando-o mais perdido ainda. - Também não encontro aquela camisola de seda vermelha, lembra? - Ele continuou sem entender o motivo do desespero, estava cansado, só pensava em jantar e ver um pouco de TV antes de dormir. Disse que ela poderia comprar outras colheres pela manhã, ali mesmo no mercadinho da esquina, mas que achava desnecessária uma camisola tão cara... O dinheiro anda difícil de aparecer... Vestiu-se enquanto ela juntava as peças espalhadas, perguntou se a comida estava quente, jantou e depois de cinco minutos à frente da TV, já roncava em alto e bom som. Ela deitou-se pela primeira vez antes de lavar a louça do jantar e também não chamou para a cama o marido, que estava desmaiado no sofá. Sentiu-se fraca, sozinha, diante de um mundo que não conhecia. Fechou os olhos enquanto balbuciava uma oração sem sentido e pediu aos céus que lhe dessem força para enfrentar o mundo desconhecido que encontraria quando acordasse de manhã. |