ORA-PRO-NOBIS
Beatriz Galvão
 
 

Tem um zumbido aqui no meu quarto. Um zumbido que não morre e não sai. Não deixa. Um zumbido que teima teima teima em existir, assim, gratuitamente.

Deitada em minha queen size, listo a enorme lista de coisas inesquecíveis, das quais preciso me lembrar (em outras palavras pleonásticas, não posso me esquecer). E a lista é interminável:

- É preciso pagar o aluguel
- É preciso pagar a luz
- É preciso pagar o telefone e os celulares
- É preciso terminar os textos para o cliente
- É preciso agendar a reunião com os patrocinadores
- É preciso comer (bom, isso não sei bem se é preciso, depois eu penso)
- É preciso...

Puxa, esqueci de fazer as unhas e o autor chegará em menos de 1 hora para conhecer o novo layout do livro! E essa porcaria de banda-larga que de tanto cair só alarga as dificuldades da vida moderna. “Moderna: a mulher de hoje em dia não se preocupa mais com assuntos domésticos”. Putz! Eu sabia!! O detergente está para acabar! Falei que faltava algo:

- Detergente; (e o que mais? Um tour pela casa resolve)...

- Sabone... não! Vou começar pela cozinha... Voltando: detergente; óleo de soja;
- Açúcar;
- Sal, para equilibrar... acho que aqui só.

Banheiro:

- Papel higiênico
- Sabonete
- Pasta de dentes e escova...
- Dedetizador, para matar o zumbido que já me (pre)enche o dia...

Caramba preciso marcar dentista! Será que estou pegando pesado? Minha psicoterapeuta diz que tenho me sobrecarregado pensando demais em mim, sem pensar efetivamente em mim. Assim, como se eu escorregasse na vaidade (mais para agradar aos outros) e me escondesse de pronto atrás do trabalho (para me esconder dos outros). Uma espécie de jogo de esconde-empurra, que eu acabei de inventar apenas para explicar a mim mesma o fenômeno psicanalítico que possivelmente eu tenha inaugurado.

(Ah, quanta pretensão, Marília, você se achar inovadora em alguma coisa tão importante!!)

E ela (a psicoterapeuta) diz: talvez falte amor. Eu já falei do Walter, de sua doçura comigo e de como ele entende a importância de se apertar o tubo da pasta de dentes corretamente, do fundo até o início. Ela não entende esta manifestação de carinho, diz que não é disso que está falando. Me faz fechar os olhos e me dirigir a uma criancinha – que na minha imaginação tem uns 4, 5 anos -, dizendo a ela que tudo ficará bem, e que eu a amo com tudo o que ela pode me oferecer. E tudo o que esta criancinha me pede em troca é – entre lágrimas e sorrisos –, que eu não a mate. Ora, pro nobis! Que idéia! Onde já se viu que eu iria matar alguém?!

(matar me faz lembrar de “sede”, que me lembra isotônico. Pronto, anotado.)

... Eis que surge o motivo do zumbido! Uma borboleta rastejante. Pode?! Fico na dúvida sobre o que fazer com ela. Para me livrar do zumbido sem assumir de todo o poder da culpa, jogo-a pela janela, que sua sorte já não me cabe ...

Voltando: jamais mataria uma criança tão doce, tão indefesa, e tão desconfiada da possibilidade de abandono... tão... Deus do Céu! Uma criança tão “eu”!

Quando Walter chegar em casa, talvez, por hoje, não me encontre.

- Flores.