O HOMEM QUE EU AMO
Bárbara Helena
 
 

Some day he'll come along,
The man I love

A estrada que cortava o município de Macabeia passava em frente ao bar naquele verão. Vento levantava poeira e mato seco, cobria de vermelho as almas e os telhados parados no tempo.

Casas antigas de estuque pintado em rosa desbotado de sol, verdes antigos e amarelos sem brilho. A gente descia todas as noites por ela, depois do show, cobertos de estrelas e silêncio. Apenas o coaxar de algum sapo nos brejos formados na chuva rápida ou sussurro de brisa morna. Vínhamos cansados e jovens, acreditando em futuros, cortando o negrume com risos, luzir de cigarros. Billie sorria para mim, cantarolava: O homem que eu amo

He'll look at me and smile
I'll understand

A Holliday, de quem ele roubara o apelido surgia na escuridão. Naquelas noites antigas era possível.

And in a little while
He'll take my hand;
And though it seems absurd,
I know we both won't say a word

Na estrada machucada de pó e pedra dura, nossos pés felizes. Billie seria meu, Mimi ia casar com o príncipe, Marina, estrela em roliudi e até Mejicano, o sax gemendo alto, tocaria nas casas enfumaçadas do Mississipi, old man river, rios correndo em torno, blues, enquanto o vento afirmava que era possível e a fumaça dos cigarros rasgava a madrugada.

Só percebi que a vida era real quando Billie, finalmente, comido por doença no peito, amor infeliz e pó, caiu em pleno palco anos depois, ali mesmo em Macabeia, onde o vento era mentiroso. Meu coração parou por alguns segundos, depois recomeçou em ritmo de jazz, enquanto os outros levavam Billie o meu Billie sol e noite, chuvas e trovoadas, para a doença e a morte.

Nunca sobrevivi a isto. Morri naquele dia para sempre e um pouco mais. Eternidade e meia.

Quando cheguei ao hospital, ele estava inconsciente, respirava por aparelhos o ar pesado que eu me sentia incapaz de processar. Calor envolvia tudo, as toalhas da mesa com moscas no bar, a capela escura cheirando a flor vencida, a nossa senhora de gesso e sorriso pálido: minha mãe me ajude, fé ,esperança, caridade, pai nosso que estais no céu, ave Maria, qualquer coisa para preencher o buraco do pânico. Fiz promessa, novena, relembrei o terço da infância, minha avó ajoelhada - creio em ti, Jesus. Nunca mais quero Billie, se ele escapar, eu mato o amor em mim, amem. Joelhos doendo da posição, a escuridão lutando com o sol ardente lá fora, tempo mudando até que o aguaceiro caiu, tormenta de verão, trovoada de ópera. Não quero Billie, aceito tudo, nossa senhora de gesso, menos o nunca mais.

Maybe I shall meet him Sunday,
Maybe Monday- maybe not;
Still I'm sure to meet him one day
Maybe Tuesday
Will be my good news day

Não sei quantas horas fiquei ali, ouvindo a chuva, sozinha no meu desespero, até Mimi aparecer:

- Billie acordou.

Ela me deu a mão e seguimos as duas até o Centro de Terapia Intensiva.

- O médico diz que ele vai ficar bom. É forte. Mas tem que largar o pó.

Eu nem ouvia direito, flutuava. Billie estava pálido, mais magro do que nunca, olhos vermelhos. Olhou para nós, decepção boiando:

- Cadê, Marina?

- Está no hotel. Ela vem mais tarde - mentiu Mimi, nossa senhora dos aflitos.

Eu saí, cega de lágrimas, encontrei Marina no bar:

- Billie perguntou de você...

Ela me olhou, não respondeu. Vadia. O cansaço tomava conta de cada parte de mim. Sentei, pedi uma cerveja e um cigarro. Bebemos em silêncio.

Segui pela estrada que cortava Macabeia ouvindo o coaxar dos sapos, coberta de estrelas recém criadas. Eu também renascera. Um pouco mais blues, um pouco mais Cigarette.

And so all else above,
I'm waiting for
The man I love

Eu mentira para nossa senhora do gesso. Mas Billie nunca seria meu.