ZIBUC
Luís Valise
 
 

O segundo semestre ia adiantado; um friozinho retardado do inverno esquálido teimava incomodar as pernas magras e compridas que escapavam das bermudas surradas em tombos do skate. Pedra, tampa de refrigerante, bola de papel, qualquer coisa servia para aquecer no caminho até a escola. A classe era mista, garotas e garotos faziam algazarra além da conta, retardando o encontro com as desilusões apreendidas em casa. Álvaro sentava atrás de Larissa, e gostava de ficar admirando seus cabelos macios, castanhos, brilhantes, balançando como em anúncios de xampu. Procurou nos bolsos, achou uma bala, ofereceu:

- Quer chupar?

Grosseria comum na turma, a menina fingiu um “ofendida ma non troppo”. Álvaro bem que gostaria de namorar com ela, mas Larissa era escorregadia, ligeira, sorria com os lábios enquanto mantinha o olhar sério. Uma vez, num aniversário, dançaram juntos duas músicas, das lentas. Álvaro tentou encostar o corpo, Larissa não deu chance, aí é que ele ficou querendo, mesmo. Quer até hoje. Já saiu com outras meninas da classe, uns amassos, uns pegos, mas com Larissa que é bom, nada. O amigo chega junto:

- E aí, Tander, na boa?

Tander é o apelido de Álvaro, de “thunderbolt”, raio em inglês. Ele é um raio no skate. Fera. Era o Mico.

- Falaê, Mico, na boa?

Mico era Máicon, por ignorância de mãe. Também era bom no skate, e melhor nas garotas. Já tinha beijado de língua. Fera. O vocabulário dos dois não era muito vasto. Na boa? Beleza? Falô. Não muito mais que isso. Mico não precisava estudar muito, pegava as coisas de primeira, sobrava tempo pra rua. Tander tinha que ralar um pouco, as notas pelas beiradas. Pior no inglês. Não conseguia falar nada. Ficava vermelho como um pimentão, travado, ainda mais quando era chamado depois da Larissa. A bandida tinha pronúncia fácil, as palavras escorriam arredondadas, quase visíveis: “Zibuc izón zetêibol”. A professora olhava por cima dos óculos:

- Sr. Álvaro!

“Sr.” Por quê? Tinha dezesseis anos, nem barba tinha, uns pelinhos loiros em cima dos lábios... Ficava em pé e tentava repetir:

- Dibuc – Dona Márcia interrompia:

- “Di”buc? “Di”buc? Mas o quê é isso, Sr. Álvaro? Faça como a Dona Larissa, ponha a língua entre os dentes. Essa é uma palavra línguo-dental. Quantas vezes tenho que repetir?

Tander tinha vergonha de colocar a língua entre os dentes, fazendo o som “ze”. Ia ficando mais vermelho, e não saía do “di”, “di”. A classe ria. Larissa ria. Dona Márcia avisou:

- Sr. Álvaro, quero falar com o senhor depois da aula. Sr. Máicon!

- Yes, teacher!

Mico filho-da-puta, ele me paga! “Yes, teacher!”, só pra me foder! Tander sentiu o rosto queimando de vergonha. Os cabelos castanhos à sua frente se separaram o suficiente para que ele visse por instantes a nuca de Larissa, clarinha, uma penugem levemente aloirada, sentiu vontade de morde-la até faze-la chorar.

Quando todos se foram, ele permaneceu sentado em sua carteira até Dona Márcia olhar para ele:

- Sr. Álvaro, venha cá.

Ele se aproximou da mesa da professora e esperou. Primeira vez que a via assim de perto. Engraçado, ela era mais nova de perto. Tinha cabelos mais claros e mais curtos que os de Larissa. E exalava um perfume. De fruta... de algo verde... deu vontade de sentir de pertinho...

- Sr. Álvaro, o fim do ano está chegando, suas notas em inglês estão baixas. O quê o senhor pensa fazer em relação a isso?

Tander não fazia a menor idéia. Não pensou que estivesse tão mal assim. Gaguejou:

- Não sei, não senhora... Não sei... Não sei...

- Seus pais podem pagar aulas particulares?

- Acho que sim...

- Então fale com eles. Se concordarem, combinamos o preço e os horários. Certo?

Tander se preparou para a primeira aula: tomou banho, escovou os dentes, vestiu roupa limpa, penteou os cabelos. Tocou a campainha e esperou. A professora abriu a porta:

- Entre, Sr. Álvaro.

O apartamento era normal, a sala bem-decorada, sentaram à mesa de jantar. Gramática e pronúncia. Gramática e pronúncia. O tempo voou. Duas aulas por semana. Quatro semanas. Oito aulas. Passaram para a sala de estar. Ele na poltrona, ela no sofá. Gramática e pronúncia. Ela comandou:

- Venha cá, sente-se ao meu lado.

Tander sentou-se na beira do sofá, sem saber onde punha as mãos. Ela falava com calma:

- Olhe bem pra mim. Veja minha boca. E punha a ponta da língua entre os dentes.

- Agora você. Ponha a língua entre os dentes. Tander ficou vermelho, mas obedeceu.

- Muito bem. Vá treinando em casa. E na próxima aula não precisa se produzir tanto, venha com a roupa que você usa normalmente. E não precisa tomar banho.

Máicon observava o amigo fazendo piruetas com o skate, estranhou a folga:

- E aí, meu, não vai na aula de inglês?

- Vou.

- Assim, sem tomar nem banho?

- É.

- Dona Márcia não vai gostar. Tander ficou na dele. Quando deu a hora, se mandou.

Tocou a campainha, e esperou. A porta se abriu, ele entrou carregando o skate debaixo do braço. Colocou com cuidado sobre o tapete. A professora indicou o sofá:

- Pode sentar.

Ela foi lá para dentro, enquanto ele sentia o coração bater desesperado, sem saber bem por que. Quando ela voltou, ele viu que ela calçava sandálias. Gostou de ver seus pés quase nus, as unhas pintadas. Ela sentou perto dele. Pediu:

- Posso fazer uma coisa?

- O quê?

- Uma coisa. Tander não teve saída:

- Pode.

A professora chegou o corpo junto dele, encostou o rosto junto ao seu pescoço, e cheirou. Ficou assim alguns instantes, sentindo o cheiro do pescoço suado do garoto. Tander também sentiu de perto o perfume de fruta, de verde. Então, ela pediu:

- Ponha a língua entre os dentes. Tander sentiu uma ponta de desilusão. Outra aula. Gramática e pronúncia.

Ele colocou a língua como ela ensinara, mas aí ela segurou seu rosto com as duas mãos, aproximou sua boca da dele, e deu um beijo sobre a ponta da sua língua. Tander ficou duro no sofá. Os olhos da professora eram castanhos, e estavam doces. Seu perfume de fruta... Tander deu beijo em seu rosto. Ela pousou a mão nas pernas do rapaz, apertou seus músculos, pediu para que ele abrisse sua blusa. Perguntou:

- Você sabe como se diz “seios” em inglês? Ele viu, e aprendeu.

- Você sabe como se diz “coxas” em inglês? Tander viu, e aprendeu.

- Você sabe como se diz “xoxota” em inglês? Álvaro viu, e aprendeu para sempre.

No comecinho de dezembro saíram as notas. No pátio da escola a balbúrdia estava instalada. Gritos, correrias, palavrões. Larissa viu Tander de longe. Não sabia por quê, mas começava a acha-lo atraente. Andou em sua direção.

- Parabéns, Tander. Você tirou boas notas. Inclusive em inglês.

- Falô, Larissa, valeu. Você também foi mó legal. Beleza? E saiu em direção ao Máicon.

- Falaê, Mico! Tudo em cima?

- É nóis, mano! Vamo nessa?

- Demorô!

Os dois foram andando em direção à porta da rua. Antes de sair, Tander olhou para trás, sorriu para Larissa, e pôs a língua entre os dentes.