HOMO CANNINIS
Jamilton Barbosa
 
 

A mulher e seu cachorro iam sair para caminhar. Embora absolutamente sincrônicos em horário de saída e indo para o mesmo lugar, ambos iam por razões diferentes. A mulher ia levar o cachorro para passear, para que o coitado pudesse dar uma mijadinha e esticar um pouco as pernas dando uma caminhada, pois o aperto do apartamento seria "supostamente" insuportável para o cachorro. O cachorro latia como um desesperado em frente à porta. Pobre coitado não falava nossa língua e por isso só podia reclamar latindo.

Saíram os dois para dar a caminhada. O cachorro está completamente tomado de animo, pois acredita que vai poder fazer todas as aventuras que havia imaginado durante a semana inteira. Será que seus amigos cachorros estariam lá? Será que o audacioso Barão Russo estaria caminhando hoje? e a bela Dama Canadense?. Ela lhe havia dito que sairia hoje. Por essas e por outras é que o cachorro estava tremendamente ansioso, esperançoso. Arrisco em dizer: profetizando momentos de lembrança eterna, para aquele dia de caminhada.

A mulher por sua vez saiu primeiro para levar o cachorro para dar umas voltas, para que ele pudesse fazer xixi e dar uma caminhada. Mas nada a impedia de passar por lugares que mais lhe interessavam: na frente de lojas, pois ela estava atrás de um específico tecido já fazia tempo, na frente de uma loja de aparelhos eletrônicos, outra busca sua há tanto tempo, por conta da necessidade de um despertador, ou qualquer outras lojas que pudessem ser de seu interesse.

Saíram os dois a caminhar pelas ruas. Na primeira esquina, o cachorro vê um outro cachorro do outro lado da rua. Se ele não está enganado, aquele é o bom e velho Ducão! Ele se agita inteiro, tenta ao máximo caminhar para o outro lado da rua, chega até a pular e soltar gritos ridículos, para que sua dona o levasse para lá. Tudo em vão, pois ela nem percebe esse agito, seus olhos e pensamentos estão mais entretidos com os fabulosos preços que uma loja de azulejos oferece. O pobre cachorro late freneticamente, o próprio Ducão também se manifesta para o dono, como que dizendo "ei, idiota, não vê que eu quero ir para lá!", mas o dono parece estar em outro planeta, observando uma gigantesca foto exposta em uma vitrine que mostra uma mulher nua, e diga-se de passagem, QUE MULHER! Ducão tenta ao máximo fazer seu dono levá-lo para o outro lado, poderia se dizer, que para sua idade extremamente avançada, ele fez até o impossível, enquanto latia e pulava. O cachorro, então, saltava feito uma pulga, chegava até o limite da corda, que o puxava para baixo em um tremendo tranco, tal a altura e força do seu salto tinha. Latia como um desesperado, como que vendo sua mãe partir em um barco para uma ilha desconhecida...E nada. Sua dona, e o dono de Ducão, estavam bem longe dali, embora ambos houvessem saído de casa com o único pretexto de levar os coitados para dar uma caminhada e uma mijada.

A mulher acha que vê uma amiga à distância e aperta o passo. O cachorro que estava prestes a começar seu tão aguardado afrouxar da bexiga, é pego de surpresa e até se mija um pouco em função do gigantesco solavanco que levou ao ser arrastado pela coleira. Ele late sem parar, tenta avisar a dona, mas ela não escuta pois está gritando o nome da amiga "Jacira! Jacira! Jacira!"

O cachorro, que até então caminhava na maior tranqüilidade, quando passou por um outro cachorro, cuja existência ele desconhecia...pirou. Realmente pirou. Nem ele sabia por que. Seria o cheiro estranho vindo de seu traseiro? Seria sua aparência meio suja? Ele não sabia, mas os fatos eram: ele latia como um possuído. Tentou arrancar fora seu rosto com uma mordida certeira, a sorte do outro cachorro foi o reflexo ninjístico que sua dona teve puxando-o para seu lado e impedindo a mordida.

Do nada, quando o cachorro estava completamente compenetrado em cheirar flores em um jardim, a mulher começou a correr. Ele já estava ficando um pouco cansado da caminhada e acreditava que já estavam prestes a voltar para casa, quando isto aconteceu. Aquele puxão inicial para o trote, mais parecia um puxão em direção ao inferno ardendo feito brasa. E correram por uns belos 20 minutos, em trote elegante.

Em meio às avenidas movimentadas, milhares e milhares de pés transitando quase sobre ele, o cachorro se via com certo medo diante de toda essa imensa e assustadora explosão instantânea de coisas acontecendo a sua volta. Bem ali, dentro do caos, a mulher resolve entrar em uma farmácia que não aceita a entrada de animais. Ela amarra o cachorro no poste bem em frente à farmácia, pede para o moço que estava na entrada vigia-lo e entra. Abandonado em meio à destruição eminente, ele se apavora, late desesperadamente, tenta ir atrás da mulher, fica a ponto de sentar e uivar para os deuses para que eles façam ela voltar...E é exatamente o que ele faz, até a mulher voltar e tirá-lo dali.

Em outro momento a mulher encontrou um grande amigo que passeava com seu cachorro. Ficaram em estado de conversa profunda por mais de meia hora. Azar do cachorro, que odiava o outro cachorro, e teve que ficar escutando ele falar com quantas cadelas havia cruzado; como ele havia dado porrada num pastor gigantesco; como ele isso, como ele aquilo; porque ele era o melhor em tal coisa, e assim por diante. Quando partiram sentiu suas orelhas extremamente inchadas e já estava de saco cheio daquele passeio miserável. Ficou latindo e reclamando pelo resto do caminho, até sua dona perder o animo de continuar, literalmente, arrastando-o pela rua e decidir voltar para casa.

É por isso que hoje pela manhã me olhei no espelho e me vi como um cachorro, sendo arrastado para todos os lados pela vida, que me enfiou uma coleira bem apertada e justa. Por essas e por outras é que eu sempre disse, desde hoje de manhã:

-Viva os vira-latas!