COMIDA DE BOTECO
Flávio Martins
 
 

Alto, magro e esguio, Morfino andava pelas redondezas do Maletta com um ar de preocupado. Sabia que seria um zeninguém se não conseguisse uma nova vítima para seu plano. Morfino não aparentava ter a idade que tinha, era muito mais velho e era impossível determinar com quem se parecia. Diziam à boca miúda que era a cara do Herchovich e que, mesmo feio, era um sedutor sem limites. Desde que aparecera na região, dizia-se advogado, mas ninguém sabia ao certo o que fazia ou de onde viera. Era uma incónigta. Diziam que Mazinho após conhecê-lo, foi parar no Galba Veloso.

Um dia, bêbado no boteco do Sapão, Morfino deixou escapar um dos seus muitos segredos: não sonhava. E isso acontecia há muitos anos. Deixou transparecer também que vinha de longe, da região da Rússia, sempre viajando para “ganhar a vida”. Morfino mora bem, mora em Santa Teresa e gosta muito do macarrão à bolonhesa da esquina da praça. Se pudessem averiguar sua vida, os taxistas descobririam que por não sonhar, Morfino, sugava mentes alheias para viver dos sonhos das vítimas. Ninguém sabia, mas Ele era um vampiro decadente. Apaixonado. Filho do demo.

Em Santa Teresa, Morfino conhecia vários taxistas, dentre os quais Adão, um ex-funcionário público aposentado, barrigudo e careca. Adão era o que alguém poderia considerar como sendo peça rara e sortudo. Usava roach, perfume da Avon, corrente de ouro e toda quinta cortava cabelo no Mercado Central. Além do táxi, Adão tinha uma coceirinha gostosa no pé esquerdo e uma namoradinha de parar o trânsito. Morfino nunca a tinha visto quando, num domingo andando pela praça, viu Adão conversando com uma morena gostosa que chamava a atenção até de outras mulheres. Adão parecia bêbado pela mulher e a despia com os olhos. Os olhares dos outros taxistas também pareciam desnudar aquela Vênus cor de ébano. Morfino enlouqueceu, ia chegar perto para se deliciar da visão, mas Adão deu algum dinheiro à tesuda e ela se foi rebolando pela Mármore.

De manhã Morfino não sonhou, mas desejou aquela mulher como se ela fosse a última do planeta. Bebeu algum vinho, fumou dois Cadillacs e se deitou na varanda do apartamento. Maquinava uma forma de se aproximar da morena, que imaginava, além de bela, teria muitos sonhos a realizar. Estava apaionado. Avassalado.

À noite levantou-se e foi ao Spa-ghetto, o bar que fica em frente ao ponto de táxi. De lá de dentro, podia ver os táxis e o movimento da praça. Subitamente sente um toque no ombro. Era Adão.

-Diz ai ô Morfino gente boa, que cara é essa de desanimado, homem?

- Nada, só estou de veneta mesmo, tomando um ar.

-Rapaz, você não dorme? Vi você ontem à noite andando pela praça por horas.

-Sofro de insônia. Isso é coisa antiga e, além disso, gosto da noite.

- Morfino, cê não me engana, acha que não vi como comia minha mulher com os olhos?

O vampiro se assustou e fingiu não entender o tom de ironia.

-Ela é bonita. Cara sortudo você. Tem pelo menos uns 25 anos?

-Nada, cara, ninfetinha a Natasha. Mas fica comigo pela grana, ela não me ama. Mas transa como ninguém e não me amola. É tudo que um velho como eu poderia querer.O único problema é que ela me leva todo o rendimento do fim de semana. Isso é osso. E eu que tenho que pagar as prestações do carro, fico apertado.

Nesse momento os olhos fundos e apaixonados do ladrão de sonhos brilharam e ele arriscou alto:

-Tá desistindo dela? Podemos dar um jeito nisso aí. Mas vai ter que me ouvir.

O taxista, que era ganancioso até os ossos, abanou a cabeça e ouviu o plano do vampiro.

De salto alto, saia curta jeans e bustiê, Natasha mora num prédio invadido em Santa Efigênia. Ela, como toda jovem, sonha em ser famosa, além de ser fã da Luciana Gimenez. O que a faz mais orgulhosa e a destaca das amigas é um book feito na Sonora, ter sido musa do boteco do Caixote e amante de Adão, o que lhe rende algum dinheiro. Natasha estava muito feliz porque Adão a levaria à final do concurso Comida de Buteco, na Casa do Conde. Juntou seu dinheirinho e foi à Paraná comprar um vestidinho na Binoca. Embora excitada com a festa, Natasha estava se cansando de Adão porque ele não a assumia definitivamente e nem se resolvia com a ex-mulher. Já Morfino, sabia bem o que queria e como o conseguir. Assim, depois de conversar bastante com Adão e sentir o cheiro da cobiça no espírito do taxista, oferece-lhe um opala Comodoro e uma suíte no JK de frente pra Raul Soares. Tudo isso em troca de uma noite de amor com a beldade. Adão aceitou sem hesitação:

-Putaquiupariu, isso é muito mais do que consegui em 25 anos de repartição e 15 de táxi.

Feitos os acertos, Morfino foi pra casa arquitetar o plano de ataque, afinal Natasha ainda precisava ser convencida. Adão entrou no táxi e foi pra Lagoinha tomar uma Original pra comemorar o negócio da China.

Fim de semana seguinte se encontram na Casa do Conde num festão com muitos convidados e show do Martinho da Vila. Morfino se aproxima de Adão. Adão se afasta de Natasha e acerta os últimos detalhes com o capiroto. Ela lindamente num coladinho de barras plissadas aparece e se insinua para o servo de Satã. Adão sai de fininho e vai pra mesa onde está servido o frango ao molho pardo. Enquanto o garçom lhe oferece um chouriço à palito, Morfino trava uma conversa sem conteúdo com a ninfeta. Natasha está apalermada por aquele homem que ela não saberia definir como bonito ou charmoso, mas que a amarrava com as cordas da simpatia.

- Lingüiça de boi com arroz branco, vinho chapinha ou sangue de boi?

-Nada não, me dá só uma cachacinha com chouriço. E você, Natasha, o que prefere?

Morfino tentava ser boa-praça enquanto Natasha recusava a comida.

-Ô seu Morfino, que tal a gente dar uma andadinha por ai? Aqui tá meio cheio né?

- Sem formalidades, mocinha. Pode me chamar de Morfino.

Foram para o lado esquerdo do pátio onde havia galpões vazios e algumas velhas peças de locomotiva. Nas mãos, a tigelinha de chouriço e a cachaça.

De dentro do galpão ouvem a música vindo de fora e o Esquerdo convida a moça pra dançar, beijando-a com volúpia. Morfino é esperto, ele sabe que ela cairá no seu plano e tira uma garrafinha com ungüento de dentro do paletó. Eles bebem a cachaça e ardem de desejo. Enquanto dançam, ele fala palavras indecifráveis no ouvido da moça. Bêbada, Natasha acha graça e se deixa levar pelo príncipe da escuridão. Assim que abre a garrafinha, o demo esfrega o líquido nos cabelos da moça, que já está se contorcendo de prazer. Natasha quer sexo, Morfino quer sonhar. Ele, entre a paixao e o êxtase usa uma navalhinha de inox pra raspar os cabelos dela.Natasha o lambe no peito magro e incolor. O cinzento joga o resto do chouriço no chão e põe os cabelos da morena dentro da tigelinha e ateia fogo. Natasha apresenta os seios redondos à mostra e rasga o vestido ao meio, Morfino aspira a fumaça da tigela e entra em transe, transando, nu. Natasha passa a retorcer o corpo como se estivesse possuída, e está. Morfino se contorce de prazer e rejuvenesce aos poucos. Natasha é rasgada por dentro e por fora e os bicos dos seios se endurecem. Rebola e dá gritinhos de dor. Após longos minutos de peleja, o vampirão uiva orgásmico. A moça enfraquece e cai desmaiada e pálida. É um lençol. Pobre corpo de vestido preto. Morfino se sente renascido. Agora é alto, forte e tem uma tez saudável e corada. Se tivesse um coração, este bateria agora. O galpão fede a enxofre e fumaça.

Lá fora a festa rola sem parar e o antes magro morcegão vai andando, ajeitando as calças com as mãos e toma um táxi pro aeroporto. Dentro do galpão, Natasha é apenas uma mistura de sexo e pano preto rasgados. Está careca e desfalecida. Está morta.
A polícia chega com a sirene das Veraneios zoando e com os braços do lado de fora. Descendo das viaturas, abrem o galpão e sentem o cheiro forte de coisa queimada. No Boletim de Ocorrência Policial redigida pelo soldado Sanguinetti pode-se ler: “cadáver encontrado inerte em decúbito ventral, causa mortis desconhecida. Acusado foragido do local, modus operandi desconhecido. Ausência de sangue no local e no corpo da vítima”.

Segunda feira de manhã, em uma kitchenete no edifício JK, Adão se diverte lendo no Diário da Tarde as notícias do seu Leão do Bonfim e tomando uma cerveja gelada. No Rio, numa clínica em Santa Teresa um paciente alto e com cara de polaco está sentado, lendo no jornal a notícia sobre um assassinato em Belo Horizonte.

-Como vai, senhor? Vamos começar a hemodiálise?

A enfermeira não sabe, mas, se lhe oferecessem a cura, certamente o polaco diria:

-Não quero a cura, só quero trocar de alucinações.

Dentro dele, em algum lugar, Morfino sente algo que pensa ser amor.