MENINOS, EU VI
Creso Abreu
 
 

Meu irmão mais novo, Tito, costuma dizer que torce para o Santa Cruz e para o Palmeiras, mas ele gosta mesmo é de torcer pelos adversários. Não foi difícil convencê-lo a me acompanhar até o estádio do Arrudão àquela noite - com ameaça de boa chuvarada - para ir ver Sport e Santos. É claro que ele iria torcer para o Santos. De minha parte, eu iria ao jogo nem que chovessem seringas agulhadas, repletas com o vírus Ebola - que naquela época, acho que ainda nem existia. Mas era um sonho que se realizava.

Um sábado à noite qualquer de 1974. Dois garotos de doze e treze anos tomando o ônibus sozinhos à noite em Recife, e deixando em casa os tios despreocupados, algo impensável nos dias de hoje. Às 21 horas entraram em campo as legendárias onze camisas brancas do Santos Futebol Clube. Na verdade, nós não estávamos ali para ver as onze camisas brancas, e no meu caso, nem mesmo para ver o (glorioso) Sport Club do Recife. Nós ali estávamos, única e exclusivamente, para ver atuar, de corpo presente, o inimitável atleta da camisa de número 10, que lá estava, majestático.

Deste jogo inesquecível (todo jogo com ele era inesquecível), guardo lembranças das que ficam marcadas a ferro e fogo (todas as lembranças dos jogos dele ficam marcadas a ferro e fogo). Primeiro, a própria presença do Rei. Aquela majestade inigualável, que fazia com que todos os outros atletas, pobres mortais, quase pedissem desculpas ao executar qualquer jogada. Alguns pareciam estar no jogo mais como expectadores que como jogadores.

Depois, o golaço de Pelé (ora, golaço de Pelé também é pleonasmo, é como dizer um clássico de Alfred Hitchcock). A bola, mais súdita que nunca, deu dois pulinhos em cima da meia-lua da grande área, oferecendo-se. Mesmo de costas, o rabo dos olhos de Sua Majestade imediatamente se entendeu com aquela cortesã amantíssima, de tantas aventuras passadas. No segundo pulinho, a amada foi levemente arremessada em direção às redes, por cima de um monte de zagueiros e do pobre goleiro do Sport, que estava meio adiantado e pensou que o Rei não tinha visto. Mas ele viu. Ele via tudo.

Quando nos demos conta, ou antes mesmo, acreditem, ainda antes de nos darmos conta do que ocorrera, ele já saltara, diabólico, por três ou quatro vezes, socando o ar diante da torcida encharcada de chuva e assombro.

Meu irmão Miguel, torcedor doente do Sport (pleonasmo!), não gosta quando eu digo que foi a única vez na vida em que o nosso time tomou gol e não foi tão ruim assim.

E aí está a breve história do jogo que nunca será esquecido(1x1) por dois meninos incontidos na alegria de ter visto o Rei em pessoa. Um homem com três Copas do Mundo conquistadas, mais de 1.300 gols, e uma vida de muitos exemplos para os jovens. Há algum tempo, li que jovens de 15 a 25 anos, argentinos em sua maioria, tinham escolhido pela Internet o mortal Diego Maradona como o "jogador do século". Portanto, o mesmo Pelé, que já foi escolhido o Atleta do Século há anos, deveria agora reverenciar o "jogador de futebol do século"...

Verdade que o fato traz algum alento para mortais como eu, que sempre terão alguma esperança de serem vencedores na futurística era da cibernética, onde parece que o passado não importa tanto. Quem sabe esses internautas não dão as caras lá no meu racha em grama sintética e me escolhem como o "Peladeiro do Século"?

Pensando bem, continuarei escrevendo, com dedicação, estas e outras croniquetas. Tais jovens internautas, que parecem ignorar a pré-existência de um Rei do Futebol, não devem lá ter grandes leituras, e podem pensar em me eleger o melhor escritor brasileiro de todos os tempos, ou coisa assim. Te cuida, Machado de Assis!