UM GRANDE AMOR NÃO MORRE JAMAIS
Antonio Carlos Vellasques
 
 
À época de nossa história, São Paulo era uma cidade bucólica, cercada de chácaras, não aspirava ainda ao caos que hoje conhecemos. Os bairros estavam em franca formação, inchando com a chegada de gente de todas as partes do Brasil, esperançosos por encontrar na cidade trabalho e felicidade. São Paulo atraía corações e mentes.

Foi por esse tempo que uma família vinda de Varginha, Minas, acabou se estabelecendo num bairro afastado da zona sul. O bairro havia sido batizado com um nome peculiar de uma cidade inglesa: Parque Bristol. Era na verdade pouco mais que um acampamento, sem nenhuma rua asfaltada, ou qualquer melhoramento público; todo mundo era feliz, entretanto, apesar da vida simples e dura.

E era ali que um grande amor iria começar.

Falemos de Maria de Lourdes. Morena esguia, muito bonita, olhar vivo, Maria de Lourdes teria vinte e cinco anos quando saíram de Varginha. Lá havia completado o Científico - algo como o segundo grau atual - e era uma exceção no meio de tanta gente humilde. De temperamento simples e determinado, a moça sobressaía pela inteligência e espírito invulgares. Maria de Lourdes era feliz à sua maneira.

A moça arranjara trabalho em um local distante, na fábrica da Lacta, e para chegar ao trabalho era necessário encarar a rotina de acordar todos os dias às três da madrugada para poder se haver com a condução. Ônibus e bonde eram os meios de transporte precários existentes, porém junto com a mãe Palmyra ela não reclamava de caminhar mais de seis quilômetros até o único ponto de ônibus existente, na vila Moraes. Como isso era feito a pé de madrugada, e estafada pelas longas caminhadas, dona Palmyra logo tratou de arranjar uma companhia para levar a filha em segurança em tão longa jornada. E é aí que entra nossa outra personagem, o Benedito.

Benedito era o típico habitante da São Paulo da época: alto e espadaúdo, havia vindo com a família de Jaú, interior de São Paulo, em busca de trabalho. Como a cidade crescia a cada dia, as oportunidades para mão-de-obra elementar eram fartas na época; muitos jovens viam na cidade a oportunidade de abraçar uma nova vida, conhecer garotas e constituir família. Esses sonhos povoavam a cabeça de Benedito. E, à falta de maiores recursos, sua família também acabou se estabelecendo no mesmo Parque Bristol.

- Benedito, ando cansada dessa vida de acordar de madrugada para levar a Maria de Lourdes até o ponto de ônibus. Se não fosse pedir demais, você se incomodaria de acompanhá-la todo dia? Vejo sempre você no mesmo ponto - disse com um ar suplicante dona Palmyra, apertando as mãos.

- Dona Palmyra, para mim será um prazer. Pode ficar sossegada, eu cuidarei dela todos os dias. A gente vai conversando para matar o tempo - respondeu o Benedito com a boca seca, apertando o chapéu. - A Lourdes é muito espirituosa, assunto é que não vai faltar.

Palmyra, por sua vez, era muito amiga da mãe de José, um outro rapaz do bairro. Muito inteligente, José trabalhava também em obras na região. Haviam vindo do interior e se estabelecido numa meia-água que construíram às pressas com os parcos recursos duramente economizados. A amizade era algo palpável na época, e se fortalecia entre as duas mulheres com o passar do tempo, criando um ambiente quase de cumplicidade.

José tomou coragem certo dia:

- Mãe, estou pensando em pedir a Maria de Lourdes em namoro. Que é que a senhora acha?

- Filho, eu já havia percebido, e inclusive me adiantei: conversei com a comadre Palmyra, e ela me prometeu a mão da Maria de Lourdes para você - respondeu a mãe de José sem rodeios. - A moça é muito prendada, vocês vão se dar muito bem.

O costume de os pais - no caso, as mães - tratarem do futuro das filhas como um mero negócio era muito difundido ainda naqueles rincões. Isso seria impensável nos dias de hoje, porém à época era algo extremamente forte. Uma vez empenhada a palavra, tudo assumia um ar de compromisso inadiável, ficando a futura noiva enredada nas malhas inexoráveis de um destino preestabelecido. Era aceitar ou aceitar. Esse seria o caso, se não estivesse ocorrendo com Maria de Lourdes...

José e Maria de Lourdes acabaram ficando noivos. De aliança e tudo.

Palmyra era uma mulher de espírito extremamente forte. Casada com Pedro, um homem pacato e solícito, era ela quem dava as cartas na casa. Mãe de oito filhos - Maria de Lourdes era a mais velha com vinte e cinco anos, e a pequena Suely com apenas alguns meses - a mulher viera de Varginha munida de boa educação. Fora professora primária em Minas, e trouxera consigo o gosto pela correção e pelo trabalho. Mandona, Palmyra comandava a casa e ordenava o que e como tudo deveria ser feito. Incansável e lutadora, a mulher encarava todo tipo de trabalho lutando para manter a casa junto com o marido. Seu tipo físico franzino, entretanto, não poderia suportar muito tempo uma vida tão dura.

Uma manhã, enquanto amamentava Suely, Palmyra sentiu-se mal. Levada às pressas ao hospital não resistiu e morreu: aneurisma.

Passaram-se alguns meses, a morte da mãe tão especial ainda doía muito. Um tanto fragmentada, a família começava a preparar-se para o inevitável casamento de Maria de Lourdes com José, cuidava-se dos detalhes e datas.

Maria de Lourdes, entretanto, continuava a rotina diária de acordar de madrugada para ir trabalhar. E Benedito, sempre fiel e respeitador, escondia da moça seus verdadeiros sentimentos. Ele estava apaixonado, porém não havia como assumir isso sem causar estragos maiores. Afinal, a moça era noiva de outro rapaz. Essa história durou meses, nada de um mostrar ao outro o que realmente estava pensando.

Maria de Lourdes definitivamente não amava José.

Das pouquíssimas diversões existentes no bairro, a mais concorrida era a quermesse da Igreja do padre Paulo. Numa pequena igreja do bairro, todos os anos o bom padre organizava uma festa folclórica muito divertida, algo que evocava as boas festas de Minas. Era impossível resistir.

- José, vamos à quermesse? Vou estrear um vestido novo, e quero que você me leve à festa no sábado à noite - Maria de Lourdes estava ansiosa enquanto perguntava.

José, de temperamento muito ciumento, desconversou peremptoriamente:

- Não vai dar, não. Posso levar você a outro lugar, mas nada de quermesse!

Sem entender a razão de tanta rispidez, Maria de Lourdes voltou para casa, onde chorou compulsivamente. Cansara de ser humilhada e de sofismar sobre um casamento absurdo que não lhe interessava nem um pouco; achava até que o José era um bom rapaz, porém daí a um casamento havia um abismo. Seu coração havia pendido para outro lado há muito tempo.

Chegara o sábado tão esperado. Maria de Lourdes caprichou no visual, fez as unhas, escovou demoradamente os cabelos e foi ao guarda-roupa, de onde retirou um lindo vestido azul. Isso havia lhe custado as economias de quase um mês, porém como era delicioso sentir-se bela! Lá pelas seis da tarde desceu até a sala, onde encontrou seu pai Pedro.

- Pai, resolvi ir à quermesse. Vou sozinha, quando o José chegar diga a ele para pegar a aliança que está sobre o guarda-roupa. Para mim chega!

Pedro não falou nada, na verdade sentiu-se aliviado com a atitude corajosa de sua filha mais velha.

- Pode ir, filha, eu entrego a aliança para ele.

No fundo de toda essa trama havia mais uma personagem, um outro José, este irmão de Benedito. Astutamente, José havia secretamente dado um recado a Maria de Lourdes de que seu irmão Benedito estaria esperando por ela na quermesse de padre Paulo. Muito esperto aquele pessoal...

José, o noivo de Maria de Lourdes, chegara no horário habitual. Não encontrando a noiva, enlouqueceu ao ser informado da decisão da moça.

- A aliança está aqui, pode levar embora - disse Pedro com receio.

José tomou a aliança e saiu em desabalada carreira em direção à igreja, sem dizer uma palavra. Da porta Pedro ainda ensaiou algumas palavras ao rapaz, sem sucesso. José fervia com a idéia de ter sido passado para trás.

A noite estava maravilhosa na quermesse. Muita gente, famílias inteiras divertindo-se com jogos inocentes, bingo, música. Maria de Lourdes estava radiante, afinal estava onde seu nariz queria estar, sem tutela de ninguém, nem amarras a separá-la de seu verdadeiro destino. É claro que já havia trocado olhares com Benedito, que estava acompanhado de seu fiel irmão José. A um canto do salão Benedito não despregava os olhos da morena esguia, a boca seca, muito nervoso. Estava vestido com simplicidade, porém elegantemente.

- Mano, deixa de ser banana! Vá lá e chama a moça para dançar - disse José a seu irmão, procurando animá-lo. - Vá de uma vez!

Boemia, de Nelson Gonçalves, estava no auge, e assim que a vitrola tocou os acordes iniciais, Benedito timidamente fez sinal a Maria de Lourdes, chamando-a para dançar. Não foi necessário pedir duas vezes. A cabeça de Maria de Lourdes rodava, os pés estavam leves, a moça flutuava. Depois de tanto tempo, finalmente ela conseguira estar nos braços de seu grande amor. O vestido azul fazia com que o casal contrastasse com os outros casais. O mundo havia parado.

De repente, alguns gritos e confusão. José, o noivo, havia acabado de chegar.

- Muito bonito! Era isso mesmo que eu queria ver! - disse ele, encolerizado.

A música parou, e Maria de Lourdes, sem perder a pose:

- Pois fique sabendo que era exatamente isso que eu queria que você visse!

Benedito e Maria de Lourdes continuaram dançando. Nada mais importava.

*****

Em junho último Maria de Lourdes e Benedito completaram 51 anos de casados. Os diálogos podem não ter sido rigorosamente os expostos, afinal seria demais extrair deles detalhes que a memória um tanto tardia já teima em esconder. Entretanto, ainda dormem de mãos dadas, o que prova que de fato um grande amor não morre jamais.