PARADA
56
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Zeca
São Bernardo
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Miguel consultou o velho relógio pendurado na corrente de ouro uma ou duas vezes mais... só para constatar que o tempo não andava e, sim, arrastava-se lentamente. Não obtivera, ainda, resposta do condutor e matava o tempo lendo e relendo o velho jornal ou observando o ir e vir dos passageiros. Vez ou outra um novato espantava-se com a verdade e isso lembrava-lhe sua própria reação quando descobriu a verdade... quantos dias teriam se passado? Perguntava-se todos os dias sem contá-los ao fim de mais um mês. Comprara o bilhete e embarcara no horário previsto e fixado no quadro de avisos da velha estação de Canavieiras. Uma raridade segundo confessou-lhe o inspetor da estação, meio sem jeito. Como poderia saber que jamais chegaria á seu destino? Não, não poderia, jamais! Entretanto fora avisado mais de uma vez pela velha... e quem acreditaria em sua história se pudesse contá-la á alguém? Doutor... a morte é uma viajem que só se faz uma vez! sentenciou a cigana que vivia de ler a sorte do povo na porta da estação - E o senhor já comprou o bilhete. Contudo, prometa-me que passara lá pela minha aldeia e verá meu netinho! Onde, perguntou-lhe afoito o médico. Estamos acampados ao lado da parada 56... bem ao lado e eu e minha filha e o menino estamos na barraca verde logo em frente a saída. Prometa-me doutor, que não tardara em nos visitar... o menino, vomita muito e há dias está sem comer nada!- concluiu. Sim, balbuciou Miguel, emocionado com o pedido sincero. Isso se o condutor aceitar em parar na 56, atalhou o inspetor rindo, pois aquilo é um mato só, abandonado, no meio de lugar nenhum! Miguel ainda acenou para a cigana quando o trem partiu e pagou-lhe a leitura da mão com alguns níqueis. Que a velha quis devolver por toda lei, segundo ela dizia á todos se a sorte fosse ruim não cobrava, nem aceitava pagamento de qualquer espécie. Doutor, berrou, desça enquanto ainda é tempo. Desçam todos vocês! Ela diz isso para todo mundo e toda vez que parte um trem daqui - apregoava o jovem fiscal que recolhia os bilhetes e os picotava - a cada passageiro. Contudo, Miguel preocupava-se com a saúde do menino - que se quer conhecia - e pediu ao inspetor que intercedesse junto ao maquinista e ao condutor para que fizessem uma breve parada no local indicado pela cigana. Para que pudesse vê-lo e medicá-lo. Como poderia saber que cochilaria dez minutos depois e seria acordado pelo barulho da explosão da caldeira principal e com os gritos de pânico dos outros passageiros? Não, não poderia... e agora estava ali, preso no tempo! No ir e vir de sua própria (e de outros) agonia. Sentiu o peso de uma mão sobre seu ombro e despertou, a brisa leve o fez recobrar a consciência mais rápido e o sorriso do inspetor serviu-lhe de resposta! Finalmente desceria na parada 56 e atenderia á seu último paciente! Mas quanto tempo havia se passado, perguntou-se. Isso não importa mais aqui, disse-lhe a mulher vestida num longo vestido preto e que tomava seu chá calmamente no vagão da primeira classe, lembre-se somente que têm pouco tempo! Deves atender o menino, que não morre hoje, e voltar o mais rápido possível pois tenho outros passageiros esperando em cada estação - concluiu a própria Morte. Meio aturdido Miguel pegou sua maleta e desceu do trem. Pode sentir os olhos de inveja dos demais colegas perfurando-lhe ás costas e sorriu um breve momento. Ao descer os últimos degraus olhou para a direita e pensou em fugir... mas para onde? Retomou o caminho e concentrou-se em vencer os metros que o separavam da barraca de lona verde o mais rápido que pode. Ao aproximar-se ouviu duas mulheres discutindo alvoroçadas: Ele disse que vêm, filha! Mas mãe, já é quase noite... a senhora sabe que o trem explodiu de manhã! O tal doutor deve estar entre as vitimas ou ocupado socorrendo os feridos e se for um desses que têm nojo de ciganos? - concluiu a jovem de belos cabelos vermelhos cobre. Não sou, apressou-se Miguel em dizer ao entrar! Enquanto dispunha suas ferramentas sobre um caixote improvisado de mesa e apressava-se em despir o pequeno e examiná-lo. Bem, ao que me parece, é hepatite tipo A! Tenho aqui um antiespasmódico que vou aplicar-lhe, vou deixar-lhes uma receita se soro caseiro e vocês devem procurar alimentá-lo com uma dieta leve e procurar hidrata-lo! Por via das dúvidas levem-no ao posto na cidade logo de manhã com esta carta minha encaminhando-o ao Mendonça, colega meu que garanto-lhes também não têm nem medo, nem nojo de ciganos! - concluiu entregando-lhes as prescrições médicas e o encaminhamento á mãe. Não temos como pagar-lhe a visita, Doutor, nem os remédios - atalhou a jovem mulher. Acredite, senhora, dinheiro nenhum paga minha paz de espírito. Posso, agora, retirar-me e descansar um pouco mais em paz... afinal, minha viajem parece que vai ser um pouco mais longa. Tenho fé em Santa Sarah Kali, protetora de meu povo, que o senhor fará uma boa viajem e será muito feliz - sentenciou a velha, sorrindo-lhe. Miguel apenas acenou-lhes com a mão direita, sorriu e fez que sim com a cabeça. Deixou-lhes e subiu apressadamente as escadas da velha estação. Fosse a nevoa que cobria a serra ou as nuvens que subiam aos céus vindas das carvoarias próximas ninguém notou ou estranhou o trem ali estacionado. E muitos e muitos anos depois, numa dessas coincidências que só Deus sabe se existem e por que, a velha Maria Fumaça parou mais uma vez na parada 56 e recolheu uma cigana já muito velha, chamada Marta, que dizia ter tido um neto salvo por um certo Doutor Miguel, médico tragicamente morto num lamentável acidente horas antes de sua suposta visita ao acampamento cigano, que a esperava sentado no vagão da terceira classe certo de que suas histórias estavam ligadas por uma força muito maior. |